Mesmo sem as antigas palafitas, Alagados ainda exige atenção
Sair de casa às 5h30 da manhã para chegar à escola às 7h. Esta é a rotina diária de Emanoel de Santana Abreu, de 17 anos, e mais outros dois amigos que moram na região dos Alagados, no bairro do Uruguai, em Salvador, e estudam na Ribeira. A distância não seria tão grande, se percorrida de ônibus. Mas esse caminho é feito a pé. De famílias de baixa renda, Emanoel e os amigos não têm condições de pagar todo dia o valor da passagem do transporte público.
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Acabo ficando mais dentro de casa mesmo. Não é só pela locomoção, mas porque falta segurança
Emanoel Abreu, estudante
Ter condições de deslocamento dignas faz parte do que se chama direito à cidade. Assim como a possibilidade de ter acesso aos mais diversos espaços, como outros bairros, teatros, edificações históricas, parques, e a serviços de saúde, educação, habitação, saneamento básico, entre outros. Algo que Emanoel também reclama de não conseguir. “Acabo ficando mais dentro do bairro e dentro de casa mesmo. Não é só nem por causa da locomoção, mas pela falta de segurança também”, conta.
Na lei federal do Estatuto da Cidade, de 2001, a ideia do direito à cidade aparece como “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Para especialistas ouvidos por A TARDE, proporcioná-lo à população é um dos maiores desafios que o próximo prefeito de Salvador terá no quesito planejamento urbano.
Centralização
Com dificuldade de sair de onde mora para circular por outras áreas de Salvador, Emanoel tem atividades de lazer e acesso à cultura por causa do coletivo “Formation”, grupo de dança e teatro do qual participa no seu bairro. Apesar de fazer teatro, o também dançarino de valsa foi poucas vezes a um, sempre levado por projetos culturais realizados na região. Pisou em uma cinema pela primeira vez há seis meses, quando, também por causa de iniciativa local, foi assistir ao filme “Pantera Negra”.
Para Raimundo Nascimento, geógrafo, mestre em educação e um dos diretores da Comissão de Articulação e Mobilização dos Moradores da Península de Itapagipe (Cammpi), é preciso ampliar o acesso da população periférica a outros espaços, como o Centro da cidade, onde estão concentrados equipamentos como teatros e prédios que fazem parte da história e da cultura soteropolitanos.
“A juventude fica confinada nos bairros. Por isso que acabam surgindo os paredões, o partido alto, como formas de expressão cultural e de lazer. Eles precisam ter outras opções. Tomar cerveja no bar não é lazer”, reclama.
Uma pesquisa feita em 2006 pela professora Gisele Nussbauner, da Universidade Federal da Bahia (Ufba), já apontava a má distribuição de espaços físicos culturais como um problema na cidade. De acordo com o estudo, há um histórico na capital baiana de ausência de políticas públicas de oferta cultural que tenham como alvo os segmentos da população com menor poder aquisitivo e circulação em áreas centrais em Salvador.
A arquiteta e urbanista Angela Gordilho, professora da Ufba, observa que a concentração não acontece apenas do ponto de vista cultural. Ela aponta que as infraestruturas mais completas e sofisticadas, os investimentos públicos e até mesmo as vagas de emprego estão presentes em maior volume nas áreas de ocupação formal, como Comércio, Graça, Vitória, Rio Vermelho, Pituba e Itapuã, na chamada Orla Atlântica.
Para ela, é necessário que o próximo prefeito pense mais na cidade como um todo e menos nas áreas centrais. “Falta na cidade de Salvador é olhar a Grande Salvador, no seu conjunto, na sua expansão, uma expansão sustentável, pensando na sua cultura, que descentralize mais os grandes equipamentos urbanos, que pense as periferias. Enquanto a gente tiver exclusão, segregação e pobreza, a violência só tende a aumentar”, defende.
Secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Sérgio Guanabara se defende das críticas. Diz que a prefeitura tem aberto praças esportivas, com brinquedos, academia ao ar livre, campos e quadras para atender a população nos bairros. Ainda segundo ele o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) aprovado em 2016 traz algo que beneficiará futuramente bairros periféricos.
“A prefeitura permitiu as atividades econômicas desses espaços urbanos. Hoje o trabalho vai poder estar próximo de sua residência. O que a gente percebe hoje é que a atividade econômica está indo em busca dessas áreas. Essa política nossa de que o comércio se estabelecesse dessas zonas fez com que as pessoas não precisassem sair de suas casas para tão longe”, diz.
Ocupações
Cidade que cresceu sem planejamento, Salvador tem 70% de sua população vivendo em áreas irregulares, o que equivale a mais de 2,1 milhões pessoas morando em locais sem regularização fundiária, de acordo com Guanabara.
A prefeitura enviou para a Câmara Municipal um projeto de lei que cria um plano de regulação desses espaços. O objetivo é dar aos moradores a propriedade, ou seja, um título de que elas são donas do terreno, e não apenas da construção feita nele., Caso a proposta seja aprovada, o processo para tirar essas ocupações da informalidade deve começar nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIs), áreas demarcadas para assentamentos habitacionais de populações de baixa renda. O PDDU aponta que Salvador possui 236 zonas do tipo.
“A partir da aprovação desta lei, a prefeitura tem que fazer um plano urbanístico em cada área dessa. Vamos ter que definir a prioridade dentre essas áreas”, explica.
Reflexos
Símbolo do desenvolvimento desordenado da capital, a região de Alagados, que começou a ser ocupada em 1946, hoje não exibe mais as palafitas que se tornaram música e clipe do grupo Paralamas do Sucesso no fim dos anos 80. Paulatinamente e fruto de intensas mobilizações da população local, as habitações foram sendo substituídas por casas, no âmbito de projetos de moradia do governo estadual
Seu Geri Félix Vieira, 53 anos, levou 20 anos vivendo em palafitas, na região da Mangueira. Há seis anos, viu a antiga construção insalubre virar uma casa de verdade, onde vive com a esposa e outros familiares. Ele comemora, diz que ganhou qualidade de vida. Mas reclama de não ter acesso à saúde de qualidade. “Precisa ter aqui hospital com mais atendimento. Para ir no médico, a gente precisa ir pra mais longe daqui”, diz.
Na rua Amazonas de Baixo, no bairro do Cabula, nascida a partir da invasão a uma chácara, no início da década de 1990, moradores também reclamam da falta de serviços. Na frente casa de seu Ezequiel Pereira da Silva, de 80 anos, passa um esgoto a céu aberto cujo cheiro espanta potenciais compradores do geladinho vendido em sua residência. Ele reclama que nada é feito. Eduardo Marques, um dos fundadores da comunidade, responsabiliza os políticos. “Só lembram da gente de 4 em 4 anos. Aqui precisa de posto de saúde, de creche. A comunidade cresceu muito”.
A baixa qualidade dos serviços oferecidos a locais surgidos de forma irregular é uma das características do processo ocupacional da cidade, que gera problemas até hoje. Para o arquiteto e urbanista Lourenço Mueller, a densidade ocupacional da capital é o principal desafio do próximo gestor no planejamento urbano. “Ela [a cidade] está totalmente descompensada: em alguns bairros muito ricos a densidade baixa não viabiliza comércio e serviços autossustentáveis. Já em outros, nos aglomerados de mais baixa renda, ela torna a qualidade de vida péssima”, critica.
Na avaliação dele, para o futuro, é preciso de incentivo público a políticas de ocupação próximas às estações de metrô, criando adensamentos mais próximos a essas paradas do modal. “A simples observação do mercado imobiliário aponta nesta direção, digo, deste partido urbanístico: os terrenos em torno das estações estão ficando mais valorizados e já fazem parte das questões colocadas por compradores: ‘- qual a distância da estação?...’”, afirma.
Vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU/BA), Neilton Dórea chama atenção para outra variável precisa ser levada em conta pelo poder público em relação às habitações: as moradias para população de baixa renda. De acordo com ele, há um pensamento corrente de engenheiros e gestores de que as construções para pessoas com menos poder aquisitivo precisam ser de menor qualidade. “Tem que se mudar esse pensamento de achar que casa de pessoa pobre tem que ter baixa qualidade de arquitetura e de construção (de materiais, de tudo)”, critica.
Ocupação desordenada é uma das questões que, historicamente, revela o crescimento sem planejamento (Foto: Felipe Iruatã | Ag. A TARDE)
Centro Histórico
A reocupação de áreas do Centro Histórico da cidade é uma das principais pautas tanto da prefeitura quanto do governo estadual nos últimos tempos. Os dois entes têm investido em projetos de requalificação no local, como forma de reativar sua atividade econômica e turística. Por um lado, o Estado quer construir um Centro de Convenções no Comércio. Já a prefeitura pretende levar para o Centro Histórico cerca de 80% das suas secretarias, por exemplo.
Para Lourenço Mueller, a estratégia de “reuso” de prédios históricos é acertada. Segundo o urbanista, dar aproveitamento econômico às edificações, como transformá-las hotéis, administrativas ou de moradias é uma “proposta de urbanismo moderno”. Na sua visão, algo que precisa ser feito também é assumir o Comércio como a “verdadeira origem da nossa cidade” e dar a ele “abordagem especial”.
Neilton Dórea defende que as construções sejam usadas também de forma habitacional e que, neste sentido, haja um “mix”, com moradias para várias camadas sociais, de forma a não se criar “guetos”.
“Você tem que ter habitação perto do trabalho, serviços perto de casa. Você pegar equipamentos no centro, com toda infraestrutura e não colocar habitação seria uma tremenda falta de visão dos gestores públicos”, sustenta.
Reivindicações de morador
A saúde da gente está muito precária. Onde a gente passa a gente encontra fio, esgoto a céu aberto. Tem lugares que, quando chove, enche logo e não tem como a gente passar. Precisa melhorar o policiamento e a iluminação. Tem muitos lugares que a gente não pode passar porque está escuro. As famílias querem sair à noite e não podem por causa da escuridão e falta de policiamento. Precisa melhor muito o transporte porque está muito difícil de a gente se locomover. O transporte está subindo, não tem muito emprego. Os empregos que têm são poucos. Tem muita gente desempregada no mundo. Aí o povo pensa o quê? “Não tem emprego. Vou ter que roubar.” Mas tem tanta coisa que a gente podia fazer para melhorar. Tem tantos teatros aí, tantos grupos de dança que conseguem fazer pela comunidade, mas não vem aquela ajuda de cima. Sempre é algum grupo do local que faz. Quando o grupo vai pra fora, tem muita gente que vem com preconceito. “Ah, porque o grupo dança isso. Eles não poderiam ter feito isso.” Mas é forma uma deles de demonstrar o que estão sentindo, o que a comunidade está sentido. A forma de atuar, de dançar, de fazer um rap, poesia é uma forma de demonstrar o que eles estão necessitando no bairro. Não tem muito lazer, e o lazer que tem é pouco. Tem poucas praças, pouca diversão para os pequenos. Pouco colégio. Pouca saúde. Policiamento, piorou. Transporte, quase nenhum. É muito difícil ter um evento durante a semana e o fim de semana para a comunidade. Quando tem, é com dias contados e horas contadas. E não é aberto a todo público. Deveria ser aberto a todo o público e levar isso para escola, para, quando eles saírem, estar com a mente mais aberta, para criar coisas novas em cima das antigas.
Emanoel de Abreu, 17 anos, morador da região de Alagados, no Uruguai
'Olhar do Especialista'
Nossas cidades acumulam imensos problemas urbanísticos, diante da concentração dos benefícios urbanos, verticalização intensiva e periferização da pobreza, resultando na segregação, carência de áreas verdes e espaços públicos, esvaziamento de áreas centrais, mobilidade deficiente, dentre outras aspectos que impactam o bem-estar coletivo. Dos 202 milhões de habitantes do país, 84% estão em área urbana, metade nas metrópoles, nas quais as ocupações informais periféricas variam de 30% a 70% da população – Salvador entre as que atingem maiores índices. As políticas urbanas implementadas têm sido inócuas na conquista de cidades mais inclusivas. Com o Estatuto da Cidade/2001, muito se avançou nos direitos coletivos, entretanto, na prática, ainda não foi possível aplicar os instrumentos conquistados, em prol da construção democrática das cidades. Os grandes projetos urbanos recentes, de gestão corporativa privada, produzem seletivamente espaços exclusivos para o consumo, ficando a periferia desassistida, o que contribui para acirrar a violência urbana. Temos que persistir nas ações públicas de interesse social para a conquista de cidades melhores e mais justas.
Angela Gordilho, arquiteta e urbanista