Privatização de espaços públicos na área da folia contraria o slogan de participação popular da Prefeitura de Salvador
Eder Luis Santana e Rodrigo Vilas Bôas
Assim que o Carnaval do ano passado terminou e os trios elétricos desligaram seus alto-falantes, o prefeito João Henrique prometeu que, em 2006, a participação popular seria o ponto chave da festa. O que os números indicam, porém, é que a folia de Momo vem perdendo, a cada ano, suas características de evento do povo. Somente nos últimos três anos, houve um aumento de 52,6% no número de camarotes. Os tradicionais barraqueiros começam a desaparecer e os artistas independentes amargam pouca participação na maior festa de rua do planeta.
Enquanto a festa não começa, o som dos martelos dão o tom às estruturas grandiosas erguidas nos circuitos. Os espaços privativos oferecem serviços requintados, como boates, salão de beleza, acesso à internet e outros atrativos que fazem com que parte dos foliões sequer lembre dos artistas cantarolando do lado de fora. Os que não podem pagar para ter acesso lamentam o crescimento desses espaços, a exemplo da bibliotecária Elisângela Maranhão, 39 anos. É festa privada para turista. Os baianos não têm mais poder aquisitivo para desfrutar de nada, opina.
Em 2004, Elisângela pagou R$ 60 para ficar em uma barraca em Ondina, onde hoje está o camarote Pier Carnavalle. A estrutura ocupa uma área de 3 mil metros quadrados, no estacionamento do Clube Espanhol. Se quisesse curtir os agitos momescos no mesmo local, teria que desembolsar entre R$ 130 e R$ 180, a depender do dia escolhido.
BARRAQUEIROS Figuras cativas da festa, os barraqueiros foram pegos de surpresa este ano com as licitações abertas pela Secretaria de Serviços Públicos. Os interessados tiveram de oferecer dinheiro por cada ponto disponibilizado. Houve gente que pagou até R$ 40 mil, lamenta o presidente do Sindicato dos Barraqueiros das Festas Populares, Nivaldo Manoel Santos.
Em anos anteriores, Santos lembra que as ruas chegaram a ter 300 profissionais espalhados pelo circuito. Agora, nenhum deles conseguiu vencer as licitações. As poucas barracas são mantidas por empresários, disse. Somente na Praça Castro Alves, onde já foram registradas até 30 barracas, este ano serão oito. As demais estão no Campo Grande (14) e Ondina (7).
Um dos locais onde a concentração foi extinta é na frente do Clube Espanhol, ponto tomado pelas estruturas de camarotes. Outras áreas, como nas proximidades do Relógio de São Pedro, também foram esvaziadas. Santos chegou a oferecer R$ 1.200 para montar sua barraca na Praça Castro Alves, porém alguém ofereceu mais e levou o negócio.
A saída para quem comercializa comidas e bebidas durante a festa foi alugar pontos ao longo do percurso. Por preços que chegam a R$ 3 mil, pagam para vender as mercadorias em locais privados. Somente seis áreas foram entregues a barracas tradicionais, sendo que são espaços de jogos e não de comercialização de bebidas e lanches. É o fim da tradição, completa.
A TARDE tentou contatar o prefeito João Henrique em seu gabinete, ontem, no Palácio Thomé de Souza, mas a assessoria de imprensa informou que ele não poderia falar sobre o assunto porque estava participando de uma reunião. O prefeito não retornou a ligação.
Coordenador está otimista
Para o coordenador do Carnaval pela Emtursa, Misael Tavares, a festa de 2006 apresenta a maior participação popular de todos os tempos. Além do investimento no Carnaval dos bairros como Cajazeiras e Liberdade, artistas de destaque como Salsalitro e Gilmelândia foram contratados para fazer shows nesses locais. A entrega da chave da cidade este ano será na Liberdade e ano que vem será em Cajazeiras. Isso é participação popular, diz.
Essas estratégias foram implantadas, segundo Tavares, para fazer com que a população tivesse uma festa ampliada e a folia não ficasse limitada aos circuitos oficiais. Outra medida citada por ele é a criação de arquibancadas na Ondina, onde 25% dos lugares foi destinado a idosos e deficientes físicos. Não temos como conter o crescimento dos camarotes, pois são espaços privados. Porém, podemos oferecer cada vez mais espaços para a população, assinala.
Desde que os camarotes começaram a ser erguidos, três deles foram flagrados com obras que iam até a via pública. Todos foram obrigados a rever seus projetos. Outra obrigação também esquecida foi a necessidade de construir rampas de acesso aos portadores de necessidades especiais.
De acordo com o técnico do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia da Bahia (Crea-BA), Jairo Vicente, todos os responsáveis pelos camarotes montados foram alertados sobre a obrigatoriedade desses itens. No ano passado, fizemos trabalho educativo. Em 2006 estamos fiscalizando. A obra pode ser embargada se não seguir as normas, afirmou.
Empresa pagou R$ 370 mil para explorar novos espaços
A utilização do espaço público para a construção de camarotes vai gerar divisas ao cofres municipais. O arquiteto Renato Bittencourt, responsável pelo projeto dos camarotes Villa Carnavalle, no Campo Grande, e o Pier Carnavalle, em Ondina, ambos erguidos em áreas da prefeitura, disse que R$ 370 mil serão pagos este ano para a exploração do espaço, conforme prevê o contrato de licitação.
Explorados pela Planeta 3, os camarotes ocupam, juntos, uma área de 16 mil metros quadrados. Em Ondina, a estrutura foi construída no estacionamento do Clube Espanhol, na Avenida Oceânica. No final do ano passado, prefeitura e Espanhol entraram numa disputa pela exploração da área.De um lado, a administração municipal sustenta que a área é pública e não pertence ao clube. De outro, o Clube Espanhol defende que a área externa de estacionamento sempre fez parte de seus domínios.
O impasse, teoricamente, foi resolvido, já que um percentual será repassado pelo uso do espaço. Porém, o presidente do clube, Humberto Campos, discorda do fato de o espaço ser explorado pela prefeitura nos próximos cinco anos. Temos escrituras para provar que o terreno é nosso. Embora tenha feito um acordo, continuarei lutando na justiça pela posse.
No Campo Grande, construímos num local que sempre foi protegido pela prefeitura. Em Ondina, quem tem de resolver o problema é o clube e a prefeitura, comenta Bittencourt. O secretário Arnando Lessa diz que o clube não conseguiu provar que a área é privada. Nenhum documento foi apresentado, ressalta.
Retirada de barracas
O secretário da Sesp, Arnando Lessa, informou que 29 barracas 25 a menos que no ano passado serão montadas nos circuitos Dodô e Osmar. Outras 43 vão funcionar no bairro de Cajazeiras e 13 em Periperi. Tiramos as barracas de Ondina porque as estruturas eram modificadas pelos barraqueiros. Das sete que estavam no trecho, seis viraram camarotes no Carnaval passado. A vida de centenas de pessoas foi colocada em risco, explica.
Lessa garante que a Sesp retirou barracas somente em Ondina. No lugar delas, o folião encontrará arquibancadas populares, cobertas e com adequada infra-estrutura. Mesmo assim, há quem desaprove a iniciativa da prefeitura, como os próprios moradores do bairro. Tudo é produzido para a elite. Pobre acaba mesmo é permanecendo na pipoca, critica a industriária Hélia Gaspar, 32 anos, e que reside em Ondina há seis.
Até mesmo os turistas que estão na cidade para curtir a folia reclamam dos preços. Sabia que brincar no Carnaval da Bahia não seria barato, mas confesso que esperava preços menos salgados, desabafa a publicitária paulista Bianca Magnavita, 24 anos, que chegou à cidade na última segunda-feira.
LICITAÇÃO Arnando Lessa confirma que, na licitação, alguns barraqueiros ofereceram altas quantias, ultrapassando até os R$ 20 mil. Os cofres da prefeitura agradecem. E muito. Pela primeira vez, teremos uma receita lucrativa, comemora.
Segundo o coordenador do Carnaval pela Emtursa, Misael Tavares, apesar da retirada dos barraqueiros, houve pela primeira vez o incentivo ao trabalho dos ambulantes. Este ano, 3.800 foram cadastrados e receberam isopor, farda e acesso a um crédito opção de até R$ 1 mil como capital de giro.
Enquanto isso, donos de camarotes mostram-se insatisfeitos. Proprietária do Empório Ondina, na Avenida Oceânica, construído ao lado do camarote de Ivete Sangalo, Fátima Vidal lamenta que até agora só conseguiu vender 20% das 100 camisas que mandou confeccionar. Temo ficar no prejuízo, revela, acrescentando que os investimentos giram em torno de R$ 20 mil.
A empresária enfrenta outro problema. O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição Ecad está cobrando uma taxa no valor de R$ 450 pelos direitos autorais dos artistas de trio-elétricos. Não sei se isso é legal. Pagar para que os foliões do camarote escutem músicas. A TARDE tentou entrar em contato com o Ecad, mas as chamadas não foram atendidas.
Artistas ficam de fora da folia
Muitos artistas não poderão participar da festa pela falta de patrocínio. Um deles é a cantora Sarajane, que até agora teve garantida apenas uma apresentação no Pelourinho, graças ao contrato firmado com o governo do Estado. No ano passado, foram 31 trios independentes contra 35 este ano.
Em agosto do ano passado, a cantora afirma ter entregue ao presidente da Emtursa, Benito Gama, um projeto baseado na Lei Rouanet, no qual ficariam definidos meios de o município ajudar na captação de patrocínio. Porém, nenhuma resposta foi dada até o momento. Faltam cinco dias para o Carnaval e os artistas não sabem em que trios irão tocar nem quanto receberão de cachê, comenta.
Estima-se que pelo menos 25 artistas independentes estejam à espera de patrocínio. Hoje, a prefeitura fornece apenas o trio elétrico. Fica a cargo do artista conseguir patrocínio para custear a apresentação e o pagamento dos músicos.