Zeferina desce acorrentada até a Praça da Sé. Sete de março de 1826. O motivo do infortúnio da negra: liderar o levante do Quilombo do Urubu, área que hoje corresponde às imediações do Parque São Bartolomeu até o Cabula. Apesar das sevícias, continuava altiva.
– Quem é essa mulher que passa com cabeça erguida e todos a reverenciam? - indagava o intendente.
– Sou Zeferina, nasci livre e estou aqui para libertar meu povo – retrucou a mulher.
A socióloga Vilma Reis, coordenadora do Ceafro/Ufba, tem disposição para falar, por horas a fio, sobre as lutas das mulheres negras. A narrativa da saga de Zeferina, contada por Vilma, está no livro Rebelião escrava no Brasil – A história do Levante dos Malês em 1835, do historiador baiano João José Reis.
Como tantos severinos na vida, zeferinas houve e existem aos montes, por mais que a história tradicional se esforce para tornar invisível o papel da mulher negra na formação do povo brasileiro. Quando lembradas por figurões do pensamento brasileiro, como Gilberto Freire, a elas são atribuídos qualificativos que reforçam a construção de uma identidade negativa. Não por acaso, o que Freire enxergou nas mulheres negras foi uma suposta lascívia, altamente provocante para os brancos no período colonial. Ou seja, pela ótica, as mais diversas formas de violências cometidas pelos senhores contra elas eram apenas conseqüências de tais traços, melhor dizendo, das ancas. Ora, ora...
Identidade – Na contramão do preconceito e do estigma de objeto sexual, caminham inúmeras intelectuais negras que estudam sua própria história, no intuito de colocar a mulher negra no local que lhe é de direito.
“Conseguimos construir uma identidade e uma auto-estima, apesar de toda a negatividade que deturpa a história de luta da mulher negra, esta mulher que inclusive constituiu a base para que as mulheres de classe média pudessem sair para trabalhar”, ressalta a educadora Ana Célia da Silva. “Num contexto totalmente adverso, elas souberam desenvolver formas de sobrevivência e resistência e conseguiram conquistar determinados espaços”, relata a historiadora Cecília Moreira Soares, autora do livro Mulheres negras na Bahia do século XIX.
A pesquisadora destaca que as mulheres negras desenvolviam o chamado “trabalho de ganho” e a comercialização de produtos essenciais às cidades, chegando a constituir até o monopólio da venda de peixe em Salvador. Circulando entre as cidades Alta e Baixa, elas também se dedicavam à venda dos mais diversos produtos e iguarias, comidas da culinária africana, utensílios, linhas, agulhas. Além disso, atuavam como lavadeiras, mães-de-leite, dentre outras atividades. Mesmo no jugo escravocrata, faziam resistência.
A escrava no trabalho de ganho tinha que conseguir o dinheiro necessário para pagar ao seu proprietário o valor do acordo que permitia a ela atuar como ganhadeira, além do suficiente para se manter nas cidades, juntando também uma quantia para a compra de sua alforria e a de seus parentes. Quando libertas, informa a historiadora Cecília Moreira, elas precisavam buscar um núcleo para se manter nas cidades, ajudar na alforria de familiares e comprar bens, até mesmo outros escravos, preferindo adquirir escravas mulheres.
“Durante todo o período escravista, as mulheres negras, com o seu trabalho, protagonizaram a compra de alforrias e a organização das famílias, sendo fundamentais para a estruturação da economia”, enfatiza Vilma Reis.
Em diversos movimentos de resistência dos negros – dos quilombos às grandes revoltas, como a dos Malês (1835), em Salvador, ou a luta pela independência do País, consolidada na Bahia em 1823 –, há registros da participação destacada de mulheres negras, por mais que a história oficial as coloque sempre em papéis secundários.
Heroínas – Em Palmares, Dandara exerceu forte liderança. “Quando Domingos Jorge Velho invade Palmares, grande parte da resistência é constituída por mulheres”, frisa Vilma Reis.
Vital para a independência, outra heroína negra foi Maria Felipa, de Itaparica. Contra o domínio português, comandou negros, índios, homens e mulheres na destruição de dezenas de embarcações aportadas na Praia do Convento para atacar Salvador. Quando se fala em resistência da mulher negra, outro nome que logo vem à baila é o de Luíza Mahin, da Revolta dos Malês. Mãe do poeta e abolicionista Luiz Gama, transformou sua casa em quartel-general.
Se tem um espaço onde as mulheres negras no Brasil conseguiram ocupar lugar proeminente foi nas religiões de matriz africana, como o candomblé, e também nas irmandades católicas. Estas últimas, fundamentais para o término da escravidão.
Candomblé – Em viagem a Salvador, percorrendo os candomblés na companhia do escritor Edison Carneiro, a etnóloga americana Ruth Landes percebeu um traço marcante nos candomblés: o papel dirigente das mulheres. As andanças originaram o clássico Cidade das mulheres. Referências marcantes na sociedade brasileira como Mãe Menininha do Gantois, mãe Aninha, mãe Ilda, mãe Estela e tantas outras ialorixás são mostras do papel especial que a mulher negra ocupa no culto aos orixás. Elas, no campo do sagrado, reeditaram no Brasil o poder que as mulheres tinham nas sociedades matriarcais africanas.
“Nossa sobrevivência só foi possível graças à nossa capacidade de ter resistido na religiosidade”, considera Vilma Reis. “Nos candomblés, ser mulher religiosa significa ascender na comunidade e para além dela”, avalia Cecília.