HCT: uma questão jurídica, médica e de gestão administrativa (II)
Vitória Beltrão Bandeira *
Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e residências terapêuticas de responsabilidade concorrente estadual e municipal, com recursos federais existentes para que venham ser implantados, visam à ressocialização e humanização do tratamento dado aos portadores de transtorno mental.
Contudo, dos 417 municípios, poucos vêm cumprindo com o dever de implantação da necessária e tardia rede pública de saúde mental.
Não obstante a natureza da ilegalidade de se exigir daquele que não consegue cumprir as condições do salvo-conduto por uma questão de saúde impeditiva na falta da assistência devida, ocorre que, freqüentemente, se não são cumpridas pelo egresso portador de transtorno mental as condições retroapontadas, é por não haver continuidade da assistência psicossocial merecida.
Em muitos casos, releva notar, as reinternações resultam das dificuldades de reajustamento e ambientação resultante da segregação imposta e da falta de um trabalho social com a família receptora.
Sem haver a possibilidade de resolução desse conflito na esfera médica competente, em decorrência da inexistência de rede de saúde mental pública, transfere-se essa questão aos nossos juízes e tribunais em face ao temor de um risco às vezes inexistente.
Como se vê esse estado de coisas para que venha receber um tratamento mais justo, carece da interação entre operadores do direito e da medicina psiquiátrica para que seja mudada a política criminal referente ao portador de transtorno mental.
A segregação cautelar sem a essência cautelar que a justifique não é mais aceitável. O princípio da subsidiariedade orienta no sentido de que o Direito Penal só deve intervir quando outras áreas de direito fracassarem com medidas menos aflitivas ou gravosas.
Por que não se decreta para a contravenção prisão preventiva? É exatamente por isso, ou seja, pela falta de requisitos a uma prisão cautelar. Trabalha-se com a perspectiva de proporcionalidade com as penas aplicáveis.
Os estudiosos já assinalam que no furto deve-se atentar para isto. Em diversos países, a exemplo da Itália, Alemanha, Chile, Guatemala, Panamá, se compartilha desta idéia de que se deve evitar a prisão provisória para aqueles crimes menos gravosos. De igual forma, deve-se tratar no caso de delinqüentes portadores de transtorno mental no cometimento desse tipo ou similares, evitando-se a segregação com tratamento sob regime de internação psiquiátrica compulsória.
Por outro lado, em observância ao princípio da proporcionalidade, se ao sentenciado a lei impõe que se observe na definição do regime de tratamento psiquiátrico, se ambulatorial ou sob internação, a natureza do cometimento do tipo, em relação ao acusado por suposto cometimento de crime, não se deve admitir imposição sumária de longo período de internação, como de fato vem existindo ao portador de transtorno mental.
Com o advento da Lei 9.714/98, se permite a aplicação de penas alternativas, substitutivas da pena privativa de liberdade, aos condenados até quatro anos em crimes dolosos, sem grave ameaça ou violência à pessoa, ou em crimes culposos independentemente da pena.
Assim, se ao imputável é dispensado tratamento penal mais brando, no caso de sentenciado portador de transtorno mental pelo cometimento de tais crimes, quando reconhecida à inimputabilidade do réu, em face aos princípios constitucionais da igualdade de tratamento, dignidade da pessoa humana, legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, faz-se dever aplicar medida de segurança de tratamento psiquiátrico sob regime ambulatorial.
Ciente da importância da relação do paciente com sua família e seus amigos na terapêutica penal de reinserção social, é fundamental que sejam preservados esses laços ao acusado que não ofereça, efetivamente, riscos à integridade física das pessoas.
Aqueles que possuem tão importante papel social de fazer justiça devem reclamar, através das vias legais competentes, a prestação dos serviços de saúde mental pública condizente com a Constituição Federal, não sendo admissível fazer letra morta a Lei da Reforma Psiquiátrica, em detrimento da saúde do portador de transtorno mental, quando envolvido em prática criminosa.
A extensão territorial de nosso Estado, a inexistência de rede de saúde mental municipal e de defensores públicos nas delegacias e comarcas são entraves na salvaguarda dos direitos dos desfavorecidos, que não se encontram em bom estado de saúde mental. Mas nem por isso justificam internação psiquiátrica compulsória em desrespeito à Lei 10.216/2001, principalmente para aqueles acusados ainda não sentenciados.
Em face de a realidade do HCT envolver questões das áreas de administração hospitalar, direito criminal e saúde mental, indagações afloram e reflexões acerca do tema são necessárias, porque, certamente, deve haver medidas que se possam fazer em prol da cidadania do portador de transtorno mental, réu ou sentenciado.
Algumas delas nos surgem:
1. Qual a principal destinação do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado?
1.1. Realização de exame-médico legal de verificação da insanidade mental dos supostos delinqüentes portadores de transtorno mental?
1.2. Tratamento psiquiátrico e recuperação dos réus não sentenciados, sob regime de internação?
1.3. Tratamento psiquiátrico e recuperação dos réus não sentenciados sob regime ambulatorial?
1.4. Tratamento psiquiátrico e recuperação dos sentenciados sob regime de internação?
1.5. Tratamento psiquiátrico e recuperação dos sentenciados sob regime ambulatorial?
Dessas respostas a serem definidas indaga-se:
2. Por que não utilizar os gestores públicos para examinar a atual situação do HCT e implementar nova cultura mudando a política criminal em relação ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, a exemplo do que se fez na Defensoria Pública do Estado?
3. No caso de necessidade de submeter o sentenciado, residente em comarca distante da capital, a tratamento ambulatorial, por que não encaminhá-lo para o Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) situado na sede daquela comarca?
4. Diante do escasso número de médicos peritos no HCT diante do tratamento remuneratório defasado, obstáculo ao cumprimento do prazo legal para conclusão do exame médico-legal, por que não se institui gratificação de produtividade a esses profissionais, como forma de se estimular o interesse nessa função?
5. Por que não dotar o HCT, à semelhança dos demais hospitais de tratamento psiquiátrico, de uma estrutura médica, observando-se a diversidade de suas atribuições, a exemplo de perícia, plantão para intercorrências e assistência médica?
6. Por que não se implantar um sistema de defesa eficiente, através da Defensoria Pública do Estado, de forma a se viabilizar o contraditório e a ampla defesa em todas as unidades judiciárias criminais da Bahia em favor dos supostos delinqüentes carentes portadores de transtorno mental, preenchendo os 78% do total dos cargos vagos daquela instituição?
7. Por que não criar um Conselho Tutelar ou Central de Acompanhamento ao Egresso Portador de Transtorno Mental e dos seus Familiares, durante o período de liberação condicional, visando ao êxito do processo de humanização e reinserção social do portador de transtorno mental?
* Titular da 2ª Defensoria Pública de Execução Criminal, com atuação na Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas, em substituição cumulativa no Hospital de Custódia e Tratamento. Subdefensora pública-geral do Estado 2003-2004. Especialista em direito econômico.