O já confuso trânsito de Salvador, cada dia mais crítico devido ao aumento da frota e à concentração de lojas e escritórios em regiões estranguladas, ganhou há três anos uma nova fonte de preocupação. Em agosto de 2003, um movimento estudantil pedindo o recuo da prefeitura na decisão de aumentar em R$ 0,30 o preço da passagem de ônibus desencadeou um movimento estudantil que parou literalmente a cidade. Agora, os estudantes estão de volta às ruas, e lutam contra o novo sistema de meia-passagem, o Salvador Card.
A mais recente onda de atentados ao tráfego começou em 9 de março, quando entrou em funcionamento o cartão eletrônico. O Salvador Card permite, segundo a prefeitura, maior segurança para os passageiros e empresas, já que reduz a circulação de dinheiro nos coletivos. De acordo com lideranças estudantis, no entanto, sua implementação trouxe prejuízos aos estudantes.
As reclamações iniciais eram com relação ao número de postos inicialmente dois, agora quatro , do preço do cadastramento e da necessidade de carregar grande quantidade de dinheiro de cada vez, já que inicialmente cada estudante só podia recarregar o cartão três vezes por mês, no máximo. Os protestos revogaram as restrições.
Os estudantes, entretanto, voltaram às ruas para pedir a suspensão do cartão. Eles ainda acham a quantidade de postos pequena e mantêm a postura contrária ao pagamento antecipado das passagens, no momento da recarga. Eles querem o retorno do sistema antigo, o smart card, no qual o estudante pagava a passagem no momento em que utilizava o serviço coletivo. A prefeitura descarta a possibilidade. De quebra, as entidades resolveram incluir na pauta de reivindicações o passe livre, solicitando o subsídio integral da prefeitura dos seus gastos com transporte.
No último dia 17, os estudantes mostraram mais uma vez sua força contando com o apoio dos rodoviários, que protestavam pelo aumento de salário. Eles invadiram as ruas da capital baiana com a determinação comum de não deixar o trânsito fluir. Embora eficaz, já que poucos deles conseguem abalar o trânsito em boa parte da cidade, a estratégia começa a dar mostras de cansaço: os desentendimentos com cidadãos comuns e demais usuários do sistema de transporte se tornaram mais freqüentes, e duas das maiores organizações do movimento estudantil A União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) -, que afirmam terem começado a atual onda de protestos, suspenderam o apoio às manifestações.
Nós achamos que há espaço para o diálogo, diz Juremar de Oliveira, presidente da União Baiana de Estudantes (UEB), ligada à UNE. Se for necessário, voltaremos a protestar. Segundo ele, a bilhetagem eletrônica não deve ser descartada completamente, porque era um projeto constante do plano de governo do candidato João Henrique Carneiro. O que nós contestamos é a forma como ela foi implementada, diz.
Os estudantes que ficaram nas ruas coordenados por C.A.s, D.A.s e grêmios estudantis organizados sob a chamada Frente Única acusam os primeiros de aliar-se à prefeitura e às empresas por razões políticas e econômicas. Reproduzem-se no movimento estudantil as alianças da política nacional, diz o estudante de Engenharia Elétrica do Cefet-BA, Luiz Colombiano, integrante do Movimento Pelo Passe Livre. A Une alinha-se com o Governo do PT e do PCdoB e sofre a oposição de grupos independentes ou ligados ao PSOL e ao PSTU, diz.
Carteira
Polêmico por sua própria natureza, o Salvador Card rachou ainda mais os estudantes ao tocar na questão mais sensível da disputa pelo poder entre as entidades estudantis: a emissão de carteiras de meia-entrada. Segundo acordo firmado no dia 1o de abril com o Sindicato das Empresas de Transporte Público de Salvador (Setps), o Salvador Card serviria também como identidade estudantil. Parte do dinheiro arrecadado com o cadastramento dos estudantes seria repassado à Une, à Ueb e à Ubes. Pelo acordo, R$ 4,60 dos R$ 20,40 que cada estudante pagasse pela primeira via do cartão seria repartido entre as três organizações.
Para as entidades beneficiadas, trata-se apenas de garantir o financiamento do movimento estudantil e coibir fraudes. Havia 21 associações estudantis e muitas lucravam com a emissão de carteiras para não-estudantes, diz Jéferson Conceição, vice-presidente regional da Une. A Une foi pioneira na luta pela meia-entrada, nos anos 60, e esse dinheiro arrecadado vai financiar o movimento ao invés de enriquecer empresários, defende. Permitir a apresentação de um comprovante de matrícula no lugar da carteira, possibilita, de acordo com as entidades, maior incidência de fraudes. Um comprovante de matrícula qualquer um faz no computador e assina, diz Juremar.
Para Luiz Colombiano, a dupla função do Salvador Card que os opositores chamam de casadinha, insinuando que se trata de venda casada, prática proibida pelo Cógido do Consumidor - estabeleceria o monopólio da Une na representação estudantil. Mesmo os estudantes que não quisessem fazer parte da Une e não concordassem com suas políticas seriam obrigados a contribuir com seu financiamento.
O protesto das entidades contra a venda casada provocou a intervenção do Ministério Público Estadual, que no dia 20 de abril costurou um acordo suspendendo a exclusividade da Une e autorizando a associação do Setps a outras entidades estudantis. A intervenção também provocou a desvinculação da dupla função, e o uso do Salvador Card como carteira estudantil deixou de ser obrigatório.
Colombiano acredita que o movimento estudantil não deve contar com fonte de receita fixa. As contribuições ao movimento devem ser de acordo com a luta da vez, avalia. Para ele, fixar uma fonte permanente de recursos contribui para a perda de autonomia das entidades e para seu alinhamento automático com o Governo.
Protestos
Une e Ueb dizem que podem voltar às ruas caso o avanço das negociações seja interrompido. As pessoas sentem que o objetivo dos estudantes que estão nas ruas não é legítimo, e por isso passam a não apoiar mais e a se posicionar contra, avalia Juremar.
A Frente Única assegura que o perfil das manifestações mudou: ao invés de parar o trânsito, as entidades estariam agora apenas promovendo passeatas.Nossa ação não se limita às ruas: estamos nas escolas, politizando os estudantes, explicando as reais razões do movimento, diz Colombiano. Mas também temos que ir para as ruas, porque só assim vamos nos fazer ouvir, garante.
Passe Livre
O movimento de reação ao Salvador Card gerou um subproduto: agora, além do retorno ao sistema antigo, as entidades protestam pela gratuidade do transporte público para estudantes e desempregados. Numa cidade desigual como Salvador, não adianta oferecer escolas: o poder público também tem que levar o estudante às aulas, diz Colombiano. É uma obrigação constitucional, concorda Juremar.
Mas quem financiaria a gratuidade? Somos a favor de que os donos de carros particulares, através do Imposto de Propriedade de Veículo Automotivo (IPVA), subsidie o transporte dos estudantes, diz Saney Sampaio, vice-presidente da União dos Estudantes da Bahia. Afinal, esses impostos todos do transporte acabam não sendo reinvestidos no sistema, diz.
As empresas argumentam que a gratuidade diminuiria a receita, que passaria a não cobrir os custos do sistema. Para cobrir os custos, elas pediriam autorização da prefeitura para aumentar a passagem. E o aumento provocaria mais protestos.