Quando nascemos, entramos em um contrato social com o Estado. Tal acordo garante, através da Constituição, serviços como o atendimento médico. A tendência mundial de privatização, entretanto, e a falência declarada do poder público em gerir o serviço abrem espaço para o estabelecimento de parcerias com organizações sociais.
Durante cinco dias e com a participação de cinco repórteres, A TARDE visitou seis unidades municipais de saúde (Periperi, duas em São Marcos, Boca do Rio, Alto das Pombas e Pernambués), para investigar a qualidade do atendimento médico básico em Salvador neste quadro de terceirização. Os servidores, mais
afetados pela demolição da estabilidade através da terceirização, estão entre os que mais reclamam,
inclusive de atraso nos salários. Em algumas unidades, clientes reclamam do atendimento e dizem que a
iniciativa não trouxe melhoria. Mas há quem aprove o repasse da gestão de unidades de saúde para as
mãos de entidades que não integram a máquina da administração de Salvador.
PATRICK BROCK
Eles estão nos postos de saúde e centrais municipais de pronto atendimento; são médicos e técnicos terceirizados por organizações filantrópicas e cooperativas, que operacionalizam a administração das unidades. É uma medida de caráter emergencial, tomada após a gestão municipal passada, e está inserida no contexto do Sistema Único de Saúde, com amparo da Lei Estadual 8.647, de 29 de julho de 2003, que autoriza os contratos. Mas a falta de recursos pode comprometer essa estrutura, um tripé apoiado no governo, na iniciativa privada e na sociedade civil. E o caráter dúbio da Constituição em relação à co-gestão de serviços públicos complica ainda mais a legalidade de tais parcerias.
A iniciativa não segue a Deliberação Nº 001 do Conselho Nacional de Saúde, de 10 de março de 2005, que é contrária à terceirização da gerência e gestão de serviços e de pessoal do setor saúde, assim como, da administração gerenciada de ações e serviços, a exemplo das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) ou outros mecanismos com objetivos idênticos. Parecer do Conselho Nacional de Saúde, inclusive, considerou a lei baiana inconstitucional.
A promotora do Ministério Público Estadual Rita Tourinho explicou que existe um embate doutrinário em relação ao Artigo 137 da Constituição, que permite a participação de instituições privadas na prestação de serviços públicos. Argumenta-se que tais leis são incostitucionais porque o dispositivo na Constituição é dúbio, informou Rita. A questão pode ser regulamentada pelo Congresso Nacional ou pelo Supremo Tribunal Federal, mas ainda não chegou a tais instâncias.
No início da sua gestão, o secretário municipal da Saúde, Luís Eugênio Portela de Souza, acusou diversos problemas no atendimento à saúde em Salvador. Os contratos com empresas terceirizadas, realizados na gestão da ex-secretária Aldely Rocha, consumiam metade do orçamento de R$ 220 milhões. Existe um inquérito civil que apura denúncias de irregularidades na co-gestão de postos de saúde ocorridos na gestão passada, conta Rita. Há também uma representação do Sindicato dos Médicos referente ao não-pagamento de salários.
Neste contexto, no longo prazo, existe a possibilidade de o modelo consolidar-se na saúde pública, levantando questionamentos sobre o papel do governo na gestão e até o estabelecimento de uma lógica de mercado, em que pacientes do SUS tenham de disputar leitos com pacientes amparados por planos de saúde privada. E o sistema também dá abertura para a ocorrência de irregularidades como superfaturamento e duplicidade em compras públicas.
Salvador é dividida em 12 distritos sanitários. No de Pau da Lima, com cerca de 200 mil pessoas, são dez unidades de saúde, sendo uma delas com a administração operacionalizada pela Fundação Monte Tabor. A coordenadora do distrito, Ana Paula Chancharulo de Morais Pereira, fala que as dificuldades sempre existem. O Estado tem um número insuficiente de leitos, afirma, acusando também a gestão municipal passada de negligenciar a saúde básica durante dez anos. Ela aponta a terceirização dos médicos como positiva, pois, ultrapassa a lentidão dos concursos públicos para preencher vagas.
Nesse momento, o líder comunitário Elson Rocha entra na conversa, que acontece em um anexo do Centro de Saúde de São Marcos, onde funciona a Coordenadoria do Distrito.. Segue-se um debate acalorado sobre a privatização dos serviços de saúde. No microcosmo do gabinete acanhado (a unidade é responsável pela vigilância epidemiológica da região, que já teve surto de raiva), Elson defende a privatização total para melhorar o serviço, enquanto Ana Paula lembra: Temos de entender que o sistema de saúde não pode ser privatizado, mas temos de usar medidas administrativas. O que precisa melhorar são os instrumentos de gestão pública, mas defendo que educação, saúde, devem ser serviços públicos, e não de empresas, que têm outra lógica. Quanto à administração, para ela, é fundamental o comprometimento do gestor com a comunidade. E se a comunidade não participa, nada acontece. Mas cada caso é um caso.
Salários atrasados em dois meses
O município paga um valor predeterminado para as organizações responsáveis pela gestão, que inclui um número fixo de consultas, exames e remédios. A fiscalização cabe aos gestores municipais em cada unidade e a equipes de auditores da Secretaria Municipal de Saúde.
As informações são conflitantes em relação ao sucesso de tal iniciativa no Posto de São Marcos, um dos casos da terceirização. Durante a semana, o serviço do pronto atendimento foi elogiado por usuários entrevistados, mas, no final de semana, o quadro por algumas pessoas que procuraram a unidade foi outro. Já no Centro de Saúde Adroaldo Albergaria, em Periperi, que ainda não foi alvo da medida, segundo constatou A TARDE , a falta de recursos resultou em queda na qualidade do atendimento e até falta de médicos.
O médico Antônio Andrade Filho, responsável pela Fundação Baiana de Neurologia, que subcontrata 162 médicos para o município e emprega 60% dos médicos no Centro de Saúde Adroaldo Albergaria, em Periperi, informou que os salários atrasados de dois meses (novembro e dezembro) seriam pagos no dia em A TARDE procurou a entidade, última segunda-feira. O pagamento tinha sido normal até outubro, conta.
Sempre atrasa de 30 a 40 dias, o médico que opta pela prestação de serviço já sabe que tem essa defasagem. Essa situação é por causa do serviço público. É a burocracia, para eles emitirem o pagamento e fazerem o trabalho correto, com contas auditadas, diz Andrade Filho, sobre a falta de médicos denunciada no posto. Explicou ainda que nós não podemos criar um sistema de greve. São poucos que têm essa atitude, mas a gente chega e conversa.
A sub-secretária municipal da Saúde, Aglaé Souza, informou que o atraso no repasse de recursos para pagamento de médicos e materiais no posto do bairro de Periperi foi causado por um problema no fluxo de caixa da prefeitura. Salvador é uma cidade pobre, explica, acrescentando que já está em preparação um novo processo licitatório para ampliar a terceirização, e que empresas privadas podem vir a assumir funções administrativas nas unidades de saúde municipais.
O processo (de licitação) já está em curso, inclusive nos locais onde há filantrópicas. A população não pode ficar sem atendimento, argumenta. Mas ela ressalta que a rede não pode ultrapassar o limite de 57% de funcionários terceirizados, de acordo com determinação contida nas regras que regem o SUS. Assim, a busca é pelo equilíbrio entre a prestação de serviços e a continuidade do atendimento.
Irmã Dulce atrai pacientes
No Centro de Saúde Edison Barbosa, em Pernambués, as Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) é a entidade responsáveis pela unidade. A bandeira da Osid está em tudo, nos cartazes da religiosa pelos corredores e nos uniformes dos médicos. Segundo Shirley de Jesus, líder de Enfermagem, o nome Osid atrai pacientes, pois a tradição da instituição de não ignorar os enfermos é bem conhecida da população.
Desde 16 de julho de 2005, quando a unidade passou ao controle da Osid, o número de pacientes triplicou, conta Dolores Garcia, gerente da Osid para o posto. O aumento acabou gerando um acúmulo de pacientes, principalmente os mais graves, que dependem da orientação do Centro Estadual de Regulação. Quando manda-se um comunicado pedindo vagas, a resposta é que não há leitos disponíveis. A espera chega a demorar de cinco a seis dias e os mais prejudicados são os pacientes idosos, em estado grave ou com doenças crônicas.
Dolores afirma ainda que o número extra de pacientes não está coberto pelo contrato com a prefeitura, mas que a Osid financia o excedente. Mas a caridade tem seu preço: o acúmulo de pacientes acaba por superlotar as enfermarias da unidade, que conta com poucos leitos.