Cuiubinha do Sertão
Zeus mandou avisar que o Carnaval acabou. Claro que os tambores de Brown, o comando real de Daniela e a Maderada de Ivete vão esquecer a ordem divina e arrastar a festa até o final da tarde de hoje. Mas a maioria dos pobres mortais já vai estar desperta da doce e louca farra inspirada por Dionísio.
Mais uma vez fizemos o maior Carnaval do planeta. E como! Para ser bem precisa, a prefeitura escolheu o tema O coração do mundo bate aqui. E bateu. Talvez, como nunca, todos os caminhos do universo vieram desembocar nesta Cidade da Bahia. O líder do U2, Bono Vox, deu a dica e a migração em massa de celebridades para a farra baiana atingiu índices inimagináveis para a época em que Luiz Caldas e companhia ensaiava os acordes da axé music que virou uma indústria impressionante.
É bem verdade que vida de celebridade no Carnaval de Salvador agora vai ser A.B. (Antes de Bono) e D.B. (Depois de Bono). Artimanhas de Hermes pra cima de Xuxa, que decidiu logo nesse ano vir conhecer a folia baiana.
A rainha dos baixinhos ficou bem mais de princesa ao lado da exuberância de Ivete Sangalo, que, como boa anfitriã, até tentou ocupar o papel de coadjuvante, mas uma vez furacão sempre furacão. O certo é que depois de Bono Vox não ter resistido à provocação da mesma Ivete e entoar em bom português o irreverente Chupa toda, nada mais será como antes nesse Olimpo baiano.
Periga a canção que faria corar os mais comportadinhos virar cult e trazer de volta os Frutos Tropicais que a levaram para a rua com o singelo título de Céu da Boca.
A folia que já atraía a constelação Rio-São Paulo de famosos, agora tem ponte internacional. Que o diga o DJ inglês Fatboy Slim. Isso mesmo: música eletrônica no meio da rua agora também rola. Mais novidade como o reggae, rock, com elementos de rap e funk soul do Falcão (explica-me pacientemente minha colega Y-Juca-Pirama, antenada como ninguém nessa salada de ritmos que se tornou o Carnaval).
O sociólogo e professor da Ufba Milton Moura, rápido e conhecedor das entrelinhas da muvuca baiana como poucos, sintetiza: o trio elétrico agora é um palco na melhor extensão do termo, um verdadeiro acontecimento. E o Carnaval virou um festival de música. É isso.
Quanto ao povão, este, apesar das promessas do prefeito de que esse ano a folia de bairro receberia atenção, Cajazeiras, Itapuã e Liberdade tiveram que aproveitar quem realmente quis dar o ar da graça. Até o arrocha de Silvano Sales deu xabu.
A boa iniciativa de começar o Carnaval da Liberdade foi a esperança de que a galera que não tem dinheiro para bloco ou para camarote também teria seu lugarzinho para aproveitar, mas nada. Democratizar a festa com certeza vai ser tema para mais debate neste ano e projeções otimistas para 2007.
E é também Moura quem chama a atenção para a tensão mal controlada reinante não só na pancadaria que tanto chocou Brown, Daniela e Gil e provocou um puxão de orelhas no ministro dado pelo primeiro, também estava espalhada nos pontos de ônibus, onde voltar pra casa é o mesmo que subir até o Olimpo.
Mas nem tudo é tristeza no reino dos simples mortais. O mesmo Milton Moura chama a atenção para a criatividade que rola solta na madrugada do Campo Grande, com pagode, funk, arrocha, reggae e até bloco afro tocando Roberto Carlos. Tudo se misturando, o que pode ser início de novos ritmos que podem pipocar a qualquer momento.
Tem também a criatividade desses blocos que não têm quase dinheiro nenhum e levam para suas fantasias o que é mais barato e tá à mão como aqueles paninhos descartáveis para enxugar pia. É um sinal de que a capacidade de reinvenção desse Carnaval do povo é inesgotável e cheio de possibilidades de dar uma virada. Quando se vê a Mudança do Garcia voltar com tudo é um consolo de que a democracia no reino de Momo não é apenas utopia.