Capela e o Convento de Santo Antônio, edificações franciscanas do século XVII, vão ser recuperados em Cairu
Mary Weinstein
Por terra ou mar, a chegada a Cairu é de encantar. Logo avistam-se duas colinas em uma mesma cumeada. Sobre a do lado esquerdo, está a matriz de Nossa Senhora do Rosário, erguida no século XVII, e que permanece fechada, depois que o forro do telhado caiu, no mês passado. Na segunda, estão a capela e o Convento de Santo Antônio, que começaram a ser construídos em 1654 e que, durante a Festa de São Benedito, ontem, receberam a confirmação oficial de que, finalmente, serão restaurados, como precisava ser feito há mais de 100 anos.
Além da invasão de veranistas, que chegam de barco, de Morro de São Paulo, Boipeba e demais ilhas do arquipélago de Tinharé, quinta-feira o movimento era intenso por causa dos preparativos para a festa. Dentro da capela, providenciavam-se a colocação de enfeites e a instalação do som, com as músicas da moda sendo ensaiadas entre as paredes que, por três séculos, abrigam os franciscanos e seus cânticos espirituais.
Turistas em biquínis e calções de praia, ou no máximo shorts e camisetas, circulavam e ouviam o volume alto das caixas de som, enquanto contemplavam pinturas ilusionistas e imagens barrocas. O homenageado São Benedito, filho de escravos, que chegou a ser guardião de convento na Itália, já estava no andor, pronto para a procissão.
MEDIEVAL Para entrar na capela e no Convento, se a porta não estiver aberta, é só puxar uma cordinha que aciona um sino que repica lá dentro do claustro e aí vem um dos frades, atravessando corredores azulejados e largas escadarias, atender, seguindo uma logística quase medieval, mas que funciona. Não há cobrança de ingresso para entrar no convento. Mas o turista é sensibilizado a deixar uma colaboração dentro de uma caixa de papel.
Hoje, vivem somente dois frades na imensidão dos 4.200 metros quadrados de área construída, em dois pavimentos, em torno do claustro, que formam o conjunto barroco erguido praticamente no meio da mata e do mar, no século XVII. Hoje, este é um dos maiores exemplares da arquitetura franciscana no Brasil.
Frei Hilton Francisco Botelho, pernambucano, 56 anos, é o guardião, ou seja, o responsável, o superior do convento. O outro é o frei Lucas Dolle, alemão, 76 anos, vice-guardião. Os dois adoram a casa religiosa e estão radiantes com a restauração que será feita pela primeira vez, de forma integral e sem necessidade de grandes economias que prejudiquem a integridade do monumento tombado nacionalmente em 1941.
De 2000 para cá, uma restauração de imagens custou cerca de R$ 600 mil. Agora, até as estruturas da edificação vão ser reparadas, explica o engenheiro Manuel Telles, assessor do Grupo Ecológico Humanista Papamel ou Propágulos Prum Ambiente Ecologicamente Legal, que, formalmente, representa o convento frente ao patrocinador.
Azulejos e mobiliário
A igreja tem teto com pintura simples, do século XIX e torre recuada com terminação em forma de pirâmide, revestida de azulejos. A fachada da capela é em estilo barroco, com pilastras, frisos e volutas em cantaria.
A nave e a capela-mor têm tribunas. A primitiva Capela dos Terceiros, dedicada a Santa Rosa de Viterbo, conserva retábulo do tipo romântico. A sacristia é ornada e azulejada. Tem teto ilusionista e lavabo em lioz e mármore de estremoz. O convento conserva raras imagens, entre as quais a de Santo Antônio de Pádua, Nossa Senhora de Brotas (séc. XVII), Santa Rosa de Viterbo e Nossa Senhora da Lapa. Há um mobiliário do século XVIII e XIX, em jacarandá. Igreja e convento possuem belíssimos azulejos, do tipo tapeçaria e figurados, dos séculos XVII e XVIII.
Cairu: de pólo econômico a turístico
A Cidade de Cairu, onde foi erguido o Convento e a Capela de Santo Antônio, no século XVII, é uma das três grandes ilhas que formam o arquipélogo de Tinharé e o município de Cairu. O nome era Aracajuru, que significa, casa do sol, na língua dos tupinambás que habitavam a região. Sua orla é toda margeada por mangues, mas restam manchas da Mata Atlântica na ilha.
Cairu fica a 87 quilômetros, em linha reta, de Salvador, e a 305 por rodovia (BA-001 e BR-101). O município tem 433 quilômetros quadrados de extensão e os seguintes distritos: Cairu (sede), Galeão, Gamboa e Boipeba. A povoação de Cairu surgiu ainda no século XVI, durante o desbravamento da Capitania dos Ilhéus, à que pertencia.
Convento O passo decisivo para o desenvolvimento da vila foi a instalação do convento franciscano de Santo Antônio, em 1654. Os jesuítas também estiveram por ali, por volta de 1720. Valença foi desmembrada de Cairu, em 1799. Durante as lutas de Independência, Cairu, Camamu e Valença estiveram ao lado de Cachoeira e Maragogipe. Cairu foi elevada a cidade em 1938, pelo Decreto-Lei estadual nº 10.724.
Cairu era fornecedora de farinha para a capital, desde o século XVII. Em meados do século seguinte, acrescentou a mandioca às culturas de cana-de-açúcar e de arroz. Sua decadência se inicia quando começava a ascendência de Camamu, que assumiu a liderança econômica na região. Para isto muito contribuiu a sua economia, predominantemente extrativa, e seu isolamento como ilha.
Hoje, o centro histórico de Cairu tem cerca de 100 casas antigas. Sua preservação também é recomendada. Os freis Hilton e Lucas estão radiantes com a restauração do convento onde moram, mas querem ver toda a cidade como marco de uma época. Eles mantêm contínua interação com a comunidade.
O frei e o mundo
Contam-se muitas histórias a respeito do vice-guardião do Convento de Santo Antônio, o frei Lucas Dolle, inclusive que teria convivido com guerrilheiros na América Central. Ele mesmo diz que foi soldado do Exército nazista durante a Segunda Guerra, quando perdeu o dedo polegar da mão direita. Hoje, frei Lucas quer paz e tranqüilidade nos corredores do convento e na sua cela, que tem cama, pia, mesa coberta de livros, papéis e destacando-se na simplicidade franciscana um computador. De Cairu, portanto, o frei se comunica com Deus e o mundo. Assim é que do segundo piso de um convento do século XVII, de cujas janelas se vêem bananeiras, pés de mamona, dendê e o mar, o frei envia seus e-mails pedindo apoio a ONGs européias para iniciativas sociais e conservação do patrimônio e até para ministros de Estado. Jaques Wagner esteve ontem na festa, a convite remetido pelos freis.
Essa porta não existia porque português não faz casa com portas que não sejam em linha reta. Mas essa aqui tem um sentido profundo. Está vendo esse espaço deixado pelas estacas? É que aqui era a cadeia, para os rebeldes. Hoje, estamos mais livres. Se não quiser ir para uma missa porque está muito cansado, não vai, conta Frei Hilton Botelho, que este mês deixará de ser guardião.
Poxa, logo agora, que a festa vai começar, vou ter que sair..., lamenta o Frei que está há nove anos no cargo, referindo-se à restauração. Essa é a duração estipulada pela Ordem Franciscana, cuja sede fica em Recife. Frei Hilton trabalhou muito para conseguir quem encampasse a restauração do conjunto.Passei esses anos todos implorando!, disse ele.
Foi Frei Hilton quem, há uns cinco anos, conseguiu a solidariedade do grupo Odebrecht. Segundo lembraram os freis, o senhor Norberto, dono da empresa, disse-lhes, pessoalmente, que restauraria tudo, desde que pudesse tranformar o conjunto em um hotel. A morada dos freis, que, no passado, chegou a abrigar 36 religiosos de uma só vez, seria transferida para uma nova construção.
PRECIOSIDADE Já estava tudo acertado, com a anuência de Frei Aluízio Fragoso, provincial da região nordeste. Mas frei Lucas desfez o negócio. Ao encontrar os técnicos da empreiteira fazendo medições na entrada do convento, disse que não entregaria o patrimônio histórico e religioso. Não podia aceitar essa idéia de jeito nenhum. Nunca imaginei encontrar uma preciosidade dessas no interior da Bahia, disse o frei, contando que sua primeira missa rezada naquela capela foi em 1963. Isso aqui é a coisa mais importante do mundo, avaliou.
O ministro da Cultura, Gilberto Gil, chegou a visitar o convento junto com Norberto Odebrecht. Ele adorou a edificação. Coincidentemente, dias depois, técnicos da Petrobras dentre eles o gerente regional de comunicação institucional no nordeste, Rosemberg Pinto foram a Cairu inaugurar a Casa do Sol, uma instituição dedicada a crianças do município.
Rosemberg Pinto reconheceu a importância do conjunto arquitetônico e lembrou que a Petrobras precisava construir o relacionamento com a comunidade. Então resolveu trabalhar para atuar nessa conjunção de interesses. O convento será restaurado integralmente para continuar sendo convento. Suas 18 celas serão transformadas em Casa de Retiro. O orçamento previsto para a restauração é de R$ 6 milhões.
Eduardo Barbosa, cairuense de 42 anos, alegra-se com a novidade. Se virasse hotel, perderia a tradição, a cultura, disse. Marlone Santana, 14 anos, guia turístico, diz que, no verão, cerca de 300 turistas visitam o convento, por dia. E que esse número deverá crescer com a restauração, cujas obras deverão durar dois anos.