Projeto de revitalização do Barnabé visa inserir Salvador no mercado nacional de produção da sétima arte
Expectativa pela volta do Plano do Pilar
Baixa dos Sapateiros faz 170 anos
Projeto de lazer e cultura no Porto
KATHERINE FUNKE
Do lado de fora, grafites inspirados em filmes de arte já anunciam: o Trapiche Barnabé, no Comércio, vai virar centro de produção de cinema, com todos os equipamentos necessários para produzir e finalizar um filme e evitar a busca de serviços prestados apenas no Sul e Sudeste do País.
Hoje, um estacionamento, entre paredes de pedra com aparência de ruínas do século XVIII, o Trapiche Barnabé dará lugar também a uma, talvez duas, salas de cinema de arte, espaço para exposições, projeções ao ar livre e um projeto social de formação de profissionais do cinema, de técnicos a artistas.
Hoje pela manhã, essas idéias serão apresentadas a um grupo de convidados no próprio local. A certeza na concretização marca os discursos do cineasta Bernard Attal, que comprou o prédio, e a produtora Diana Gurgel, que exerce a função de diretora- executiva.
Um grupo de investidores estrangeiros já se interessa em investir, explicam os dois. Mas também haverá necessidade de parcerias locais. Aliás, a divulgação do projeto é feita justamente para formar uma sinergia soteropolitana em torno do objetivo.
Queremos reunir os melhores profissionais da cidade aqui. Eles estão dispersos, e encontrá-los é mais complicado, diz Attal, francês que chegou à Bahia há seis anos. Aqui, dirigiu dois curtas, Ilha do Rato e 29 Polegadas, com Joselito Crispim, coordenador cultural do Grupo Bagunçaço.
As negociações para a compra do prédio demoraram dois anos e terminaram recentemente. Havia mais de 50 herdeiros do português José Pinto Rodrigues da Costa, que comprou o prédio em 1867. O valor pago não é divulgado pelo cineasta. Foi algum dinheiro, desvia, mas o importante é quanto vai ser investido.
Este montante, contudo, ainda não está definido. Ainda falta botar as idéias no papel e elaborar uma espécie de plano diretor que deve nortear a reforma. O projeto arquitetônico será escolhido em concurso, a ser realizado no primeiro semestre do ano que vem. As obras estão previstas para começar no segundo semestre.
Ainda este ano, segundo Diana, serão feitos estudos de sondagem do solo e da estrutura da edificação. Afinal, estamos sobre aterro, lembra a diretora-executiva. Ela também produz um documentário sobre Santa Luzia, bastante reverenciada no Comércio. Dirigido por Bernard, filmado em Salvador e no interior do Estado, o longa deve ser lançado em até dois anos.
Prefeitura promete incentivos fiscais
Os representantes do Trapiche Barnabé se reuniram ontem com Marcos Cidreira, coordenador geral do Escritório de Revitalização do Comércio de Salvador, órgão da prefeitura responsável por recolocar o bairro no circuito econômico e cultural da capital baiana.
Foi mais uma das muitas reuniões de Cidreira com gente interessada em investir na revitalização do Comércio. São encontros onde a prefeitura se compromete a dar incentivos fiscais e investir na infra-estrutura urbana: iluminação, pavimentação, estacionamento, ordenamento do trânsito, saneamento básico, calçamento e limpeza.
Precisamos ter certeza de que não haverá alterações no tráfego, por exemplo, diz Diana Gurgel, produtora, ao explicar as negociações com os gestores municipais. Projetos como o do Trapiche Barnabé, a serem instalados no bairro, são contemplados por isenção fiscal do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e das taxas de fiscalização (TLF), licença e localização (TLL), funcionamento (TLF), execução de obras (TLE) e venda entre pessoas vivas (ITIV).
Os incentivos municipais também abrangem redução do Imposto sobre o Serviço (ISS) de 5% para 2%, o que significa um desconto real de cerca de 60%. Claro, depende do investimento. É preciso que esteja dentro das diretrizes do que planejamos, afirma Cidreira.
O planejamento deve ficar pronto até junho, quando será aberta licitação internacional para a concretização dos projetos propostos. Cidreira estima que as obras começarão no final do ano.
O convênio para a elaboração do Planejamento Geral de Requalificação Urbana do bairro foi firmado há 16 dias. Batizado de Masterplan, o plano está sendo feito pelas empresas Concremat, do Rio de Janeiro, e TC/BR, de Brasília. As duas empresas devem fazer um levantamento de todos os prédios e negócios do bairro, necessidades urbanas e possibilidades comerciais do local.
O contrato com as empresas também contempla elaboração do projeto emergencial, segundo Cidreira para transformação de dois armazéns da Companhia das Docas da Bahia (Codeba) em área de lazer, com centro de compras e diversão, restaurantes e bares, centro de convenções e hotel cinco estrelas. Ao todo, oito armazéns fazem parte do projeto. Os escolhidos para esta primeira fase, 1 e 2, ficam em frente ao Mercado Modelo.
Casa Cor tornou o local calorento
No ano passado, o Mercado do Ouro foi usado para a realização da Casa Cor, evento de decoração. Resultado: reforma da área interna, relocação de pequenos comércios e despejo de locatários inadimplentes. O pátio interno continua fechado à circulação de pesssoas. A demolição das construções do centro do pátio, embora elas não fossem originais, gerou multa aos donos do prédio, porque não consultaram os órgãos responsáveis antes da obra.
Apesar de não ser tombado como patrimônio histórico e ser propriedade particular dos herdeiros do comerciante Amado Bahia, o Mercado do Ouro está no entorno da área considerada patrimônio da humanidade pela Unesco. Por isso, é uma zona de proteção rigorosa e, por lei municipal, qualquer intervenção deve ser avaliada pelo Escritório Técnico de Licenciamento e Fiscalização (Etelfi), instância que reúne profissionais das três esferas de governo.
A instalação da Casa Cor provocou melhoria das ruas do entorno e da iluminação, realizadas pela prefeitura. Mas a passagem do evento de arquitetura e decoração também deixou resquícios não tão positivos, dizem os atuais comerciantes.
O evento mexeu, por exemplo, na circulação de ar da oficina de luminosos: uma antiga porta, que dava acesso ao pátio interno, foi fechada por tijolos. Os funcionários reagiram ao calor provocado pela falta de vento e demoliram parte da parede nova. Meu patrão falou para derrubar tudo isso aqui, garante o soldador Luciano Santana, 31 anos.
Há mais de dez no local, Santana nem sente mais o forte cheiro de mofo e poeira que paira na oficina de paredes cinzas. Também não conhece a história do mercado, mas diz que gosta de trabalhar ali. (K.F.)
Mercado do Ouro será reformado
Com o avanço da revitalização do Comércio, edificações que não aderirem ao macroprojeto do Masterplan serão desapropriadas pela prefeitura. Os proprietários não terão nenhum incentivo fiscal e, se não venderem ou não investirem, é muito provável que o plano recomende a desapropriação, adianta Marcos Cidreira, coordenador do Escritório de Revitalização do Comércio de Salvador.
Ele diz também que muitos proprietários, de olho no lucro, têm oferecido edificações a preços mais altos do que o mercado. Outros, no entanto, recusam ofertas. Caso dos donos do Mercado do Ouro, que não aceitaram vender o espaço por R$ 2,2 milhões.
Ao contrário, os proprietários agora decidiram reformar e investir no prédio, com instalação de restaurantes e outras opções de lazer. Nós temos todo o interesse nisso, desde que a revitalização realmente ocorra. Aplicar sem a perspectiva de retorno não dá, explica o diretor, Marcelo Carvalho Monteiro.
O arquiteto já foi contratado e até março deve apresentar uma primeira proposta para o prédio, construído em 1879, comprado anos depois pelo comerciante Amado Bahia e depois passado a 13 herdeiros. Na década de 80, o número de cotas na propriedade aumentou para mais de 60, e os donos somam quase 180 pessoas, segundo Monteiro.
Seis restaurantes, três lojas de produtos de limpeza, uma revendedora de água mineral, uma oficina de luminosos e um armazém funcionam no antigo mercado. Chamado de Cais Dourado no início do século passado, o Mercado do Ouro sediava estivas e integrava a área de escoamento de produtos para o Recôncavo.
FILÉ Um dos comerciantes mais representativos do Mercado do Ouro é Juarez Zenóbio da Silva, 80 anos, inventor do lendário Filé ao Juarez. O prato, inventado por acaso num erro de cálculo da quantidade de óleo, custa R$ 26 e é um dos mais vendidos no restaurante que leva o nome do dono.
O restaurante está instalado no local há 51 anos, mas mudou de boxe em julho, dia 4, por causa da demolição dos quiosques. Para Juarez, a mudança foi boa porque ampliou o espaço interno do comércio. Mas quando o assunto é reforma ou ampliação do mercado, a opinião não é tão positiva: Nunca reformaram e nem vão reformar. É muito difícil, sentencia. (K.F.)
CRONOLOGIA
Cidade Portuária
De pólo de escoamento da produção da Colônia a área em decadência econômica
Século 17
Movimento comercial intenso nos cais de atracadouro, na atual região do porto. Açúcar e tabaco eram exportados para Europa e África, e louça, azeite, tecidos e outros produtos chegavam da Europa. Havia também navegação de cabotagem, que levava para o Recôncavo alimentos como farinha, carne seca, frutas e objetos como cerâmica.
Século 18
Começam a surgir trapiches, num total de 11 ao final do século. Um dos primeiros foi instalado pelo Tesoureiro da Coroa, o português Barnabé Cardoso Ribeiro. Instala-se a Freguesia do Pilar, em 1718. Geralmente, propriedade de comerciantes portugueses, os trapiches armazenavam os produtos e usavam trabalho escravo.
Século 19
Comércio portuário a pleno vapor, com 28 trapiches em funcionamento. Até 1840, só havia uma rua na Cidade Baixa, paralela à praia. Começam a surgir aterros, pela demanda das embarcações de grande porte. Com os aterros, novas ruas se abrem. A cidade dobra de tamanho com a Rua Miguel Calmon. O Elevador Lacerda é inaugurado em 1873. Em 1891 começam as obras do porto, que só seria inaugurado em 1913 (primeira fase) e finalizado em 1930.
Século 20
Em 1932, inaugura-se o Plano Inclinado. A Avenida Jequitaia, finalizada em 1940, modifica a dinâmica do Comércio. Nessa década, se inicia o declínio dos trapiches, que perderam a função com a instalação do porto e os avanços técnicos da navegação. O Mercado do Ouro também entra em declínio. Nas décadas de 50 e 60, incêndios sucessivos destroem, parcial ou totalmente, o Mercado Modelo, o Mercado do Ouro, a Feira de Água de Meninos e o Trapiche Barnabé, entre outros.
Fonte: historiadora Maria das Graças de Andrade Leal, doutora e professora da Universidade do Estado da Bahia