Haydê Cunha, 90, dribla a solidão com a companhia dos amigos e dos livros
Segundo o dicionário, solidão é o estado de quem está só, retirado do mundo, isolado. Mas a definição desse sentimento também pode ser encontrada facilmente no olhar do aposentado E.S., 79 anos.
Um olhar que revela algo que não é só tristeza, mas também saudade da história que viveu. "O idoso é alguém que sente falta daquilo que ele foi um dia, minha filha!", diz esse homem de poucas palavras e muita sabedoria.
E quem foi E.S. no passado? Um engenheiro de sucesso, pai de duas filhas, avô de três netas, marido de Dona Alice, com quem foi casado durante 47 anos. "Era através dela que eu enxergava a beleza do mundo. Com ela, meu olhar era sempre lua cheia".
Mas a morte inesperada da esposa, há nove anos, por conta de um infarto fulminante fez com que E.S. passasse a enxergar a vida de outra forma: a lua, sempre cheia, dos seus olhos se fez minguante. "Levaram-me os olhos e a alma". Fechou-se, assim, a janela pela qual ele espiava o mundo mais colorido.
E talvez isso explique um pouco quem é este homem atualmente. Um engenheiro aposentado, que vive sozinho em um apartamento de três quartos em um bairro nobre da cidade.
Mais do que isso: um homem que se sente sozinho, apesar do dinheiro, da atenção dos filhos, dos netos e dos poucos amigos que preservou ao longo da sua história de vida. "Tem gente que, mesmo sozinho, é multidão. Eu sou o oposto".
Uma história da qual confessa sentir muita falta. Uma vida sobre a qual não permite indagações, porquês e justificativas para a solidão que sente.
"Sinto-me só e é isso. Não reclamo a minha solidão a ninguém. Não é algo que se explique. Sei apenas que vou conviver com ela até o fim dos meus dias", diz o aposentado, que parece ter feito desse sentimento a semente com a qual aduba o solo do seu jardim, agora, cinzento.
Dados
Não há dados sobre o número de idosos solitários no Brasil. A "Pesquisa nacional sobre suicídio de idosos e proposta de atuação do setor de saúde" revelou, no entanto, que o isolamento e a solidão são os principais responsáveis pelos suicídios e tentativas de suicídio entre idosos praticados no País.
O trabalho foi realizado em 2012 pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), órgão vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). "Há um conjunto de causas que podem fazer com que uma pessoa idosa cometa suicídio, mas essas foram as mais graves, independentemente da classe social", explica a coordenadora do estudo, a antropóloga e sanitarista Cecília Minayo.
De acordo com o médico geriatra e presidente da Sociedade Brasileira Geriatria e Gerontologia (SBGG), João Bastos Freire Neto, a solidão é também um dos principais responsáveis pela depressão nesta faixa etária.
"Estudos revelam que o idoso tem um risco aumentado para depressão em torno de 40%, por isso é importante que a família esteja atenta aos sintomas", afirma.
É justamente com medo da solidão que um casal belga de idosos tomou a difícil decisão de morrer juntos. Identificados apenas pelo primeiro nome, Francis, de 89 anos, e sua esposa, Anne, de 86, pretendem cometer suicídio assistido no dia 3 de fevereiro do ano que vem, data em que comemoram 64 anos de casados.
A decisão tem apoio dos filhos, que compreendem a vontade dos pais e ajudaram na busca por um médico que aceitasse fazer o procedimento. A eutanásia é legalizada na Bélgica desde 2002.
O caso chama a atenção porque nenhum dos dois sofre de doença terminal. O que impulsiona a vontade pela eutanásia é o medo de ficar sozinho, caso um dos dois morra antes.
"É simples assim: temos medo do que vem pela frente. Medo de ficar sozinho e, acima de tudo, medo das consequências da solidão", explicou Francis em entrevista a um jornal britânico.
Medo
Diferentemente do casal belga, a ex-auditora fiscal, atualmente aposentada, Haydê Cunha, 90, dribla a solidão com a companhia dos amigos que fez no Abrigo do Salvador, no bairro de Brotas.
Foi lá que, há oito anos, ela escolheu viver com o marido, falecido há quatro. "Morávamos em um apartamento muito grande no bairro da Mouraria e resolvemos vir para cá. Fomos muito felizes, mas infelizmente ele se foi", conta.
A saudade, no entanto, não roubou a alegria de viver de dona Haydê. "Aqui, a gente nem tem tempo para se sentir sozinha. Esse lugar é um presente de Deus. Me sinto muito feliz".
Pergunto se dona Haydê se sente sozinha de vez em quando. "Sim. Gosto de ficar sozinha, de ler meu livro, de pensar na vida, mas é uma escolha. É algo que me faz bem", diz a aposentada, lembrando de um outro sentimento, a solitude. Esse estado que é se sentir também só, mas, felizmente, por opção.
Aposentadoria e perdas afetam saúde e autoestima
Segundo a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), há uma série de fatores que podem levar um idoso ao adoecimento e ao sentimento de solidão. Entre os principais estão a aposentadoria e a perda de um ente querido.
Com o aumento da expectativa de vida - que cresceu em média seis anos entre 1990 e 2012 -, a atenção a esses fatores deve ser redobrada. De acordo com estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por volta do ano de 2050, haverá, no País, 73 idosos para cada 100 crianças.
E, apesar de as mulheres serem consideradas o sexo frágil, são os homens idosos que mais se matam, segundo a "Pesquisa nacional sobre suicídio de idosos e proposta de atuação do setor de saúde", realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Enquanto o índice de suicídio no País é em torno de 4,5% para cada 100 mil habitantes, entre idosos do sexo masculino, este índice dobra, podendo subir a 20% ou até 25% para cada 100 mil habitantes. Já a taxa de mulheres que cometeram suicídio no período analisado (1980-2009) quase não sofreu alteração.
"O afastamento do mercado de trabalho leva muitas pessoas, sobretudo os homens, a um isolamento e à sensação de inutilidade. Como o papel masculino está muito centrado na sua identidade profissional, essa perda torna-se mais significativa para o homem", explica a coordenadora do trabalho e sanitarista Cecília Minayo.
Cultura
Na opinião da psicóloga Sabrina Costa, que atua no atendimento a pacientes oncológicos e de idosos, no Brasil, há uma cultura que tende a relegar o idoso ao esquecimento, a um papel secundário na sociedade.
"Diferentemente do que ocorre no Oriente e na Europa, as pessoas não são ensinadas a respeitar , valorizar e cuidar do idoso".
Ainda de acordo com a psicóloga, os brasileiros não são preparados para viver a terceira idade, com todas as suas possíveis limitações e perdas. "O envelhecimento representa, para alguns, uma fase de perdas, seja no quesito corporal, seja no financeiro, além da perda do sentido da pessoa no mundo".
Novo amor

Maria Lúcia 78, e Carlos José, 80, vivem o amor na terceira idade (Foto: Lúcio Távora | Ag. A TARDE)
Felizmente, apenas alguns vivenciam um novo amor. No caso da aposentada Maria Lúcia Albuquerque, 78, a terceira idade tem sido vivenciada com festas, curtição e a descoberta de um novo amor.
Depois de ficar viúva duas vezes, aos 68 anos, ela se viu apaixonada novamente. "Sou a prova de que não há idade para o amor e para amar alguém", conta para, em seguida, dar um beijo caloroso no parceiro, Carlos José de Matos, 80. "Foi bom redescobrir o amor nesta fase. Somos felizes juntos", resume ele.