Edição de março de 1938 traz foto de 40 órfãos | Fotos: Arquivo A TARDE | Cedoc
A edição de A TARDE em 14 de março de 1938 apresenta 40 crianças que foram recolhidas na Escola Profissional de Menores. É um grupo dos que ficaram conhecidos como “órfãos de Pau de Colher”. Elas foram trazidas para a capital após o massacre produzido pela combinação de forças do Exército e das polícias da Bahia, Pernambuco e Piauí para conter os que classificaram como “fanáticos” e também “caceteiros”. O episódio, em que se calcula que morreram 400 pessoas, foi mais um movimento em que a máquina de guerra do Estado brasileiro se voltou contra o seu próprio povo, como ocorreu em Canudos, com o desfecho em 5 de outubro de 1897, e, em 1937, na repressão à comunidade de Caldeirão, no Ceará.
Pau de Colher fica na área rural do município de Casa Nova, localizado no Médio São Francisco, a 572 quilômetros de Salvador. Em 1938, o contexto político brasileiro estava extremamente tenso. Getúlio Vargas (1882-1954) tinha instalado sua ditadura com o Estado Novo e a Bahia estava sob o governo intervencionista de Landulpho Alves (1893-1954).
No dia 10 de janeiro de 1938 um grupo formado por quatro militares e cerca de 30 civis chegou a Pau de Colher por conta de denúncias de que três pessoas foram mortas por não ter aderido ao movimento que havia se formado na localidade ainda como ressonância da comunidade de Caldeirão e da criada em torno do padre Cícero Romão (1844-1934). Nesse confronto morreram cinco das lideranças do acampamento, inclusive José Senhorinho, que era chamado de “padrinho”, e dois militares. Essa foi a deixa para o confronto final ocorrido nos dias 19, 20 e 21 de janeiro.
Em reportagem do dia 24 de janeiro de 1938, A TARDE noticiou a morte de 140 dos apontados como “fanáticos”. Quase dois meses depois, o conflito ainda era notícia. Já o texto de 14 de março dava ênfase à situação dos órfãos:
“Espantados, assustadiços têm a desconfiança característica dos sertanejos. Falam cantando e pouco sabem dizer sobre o drama que os fez orphãos. Perguntamos a um deles de cinco annos de idade José Manoel – como tinha vindo parar aqui. Olhou-nos, assustado. Os seus olhos pequeninos encheram-se de lagrimas. E só soube dizer, na sua voz infantil, uma phrase que encerrava toda a sua tragédia. — Mataram meu pae...” ( A TARDE, 14/3/1938, p.2).
Jornal noticia prisão de fanáticos (17/3/1938)
O temor das crianças era compreensível. Para enfrentar os grupos que, segundo as próprias denúncias usavam varas de marmelo como arma, o potencial militar mobilizado foi um esquadrão motorizado; uma companhia de fuzileiros, um destacamento da polícia do Piauí e duas unidades do Exército: 19º BC e 28º BC. Sobre os “fanáticos”, as descrições seguiam a linha de como eram perigosos. Uma reportagem de A TARDE, publicada em 17 de março de 1938, afirma que eles chegavam a pregar a língua de suas vítimas em paredes. Era a versão apenas das autoridades de segurança.
Memórias
A reportagem do dia 14 de março de 1938, além de mostrar as crianças alinhadas em meio aos funcionários e diretores da instituição de recolhimento, lista os seus nomes e idades: “Dioclydes Justiniano dos Reis, 10 annos; Daniel do Nascimento, 9 annos; Cicero de Souza, 9; Félix do Amor Divino, 10; Antonio Nascimento, 8; Lourival de Souza Rodrigues, 10: José Rodrigues, 10; Honório Baraúna, 9; José da Silva, 9; Angelo do Amor Divino, 9; João S. Anna Ferreira da Costa, 10; Salustiano Ferreira Nunes, 8; Manoel Ferreira Nunes, 6; Manoel Costa, 9; Manoel Ribeiro da Silva, 6; Theodoro Baraúna, 8; José Simões, 8; Manoel de Jesus, 5; Libanio Souza, 7; Domingos José Rodrigues, 6; Gonçalo Felippe de Souza, 7; Basilio da Costa, 6; Antonjo Rodrigues de Souza, 7; Manoel Libanio Gomes, 6; Alexandre Costa, 8; Emiliano Rodrigues da Silva, da Silva, 6; Alexandrino Alves da Silva, 5; Manoel Nascimento, 7; Porphirio Costa, 6; Adriano Felippe de Souza, 5; José Manoel, 5; José Alves Ferreira, 11; Lourenço Rodrigues Costa, 12; José Diniz. 12; José Pereira Costa, 12; Salusiiano Rodrigues, 11; Miguel Rodrigues Souza, 7; Elias Rodrigues de Souza, 5; Bartholomeu Ferreira, 13; Anizio Rodrigues de Souza, 15.
Esse é um registro importante, pois a memória de muitos desses órfãos mais tarde ajudou o movimento a ser analisado por meio de outras perspectivas. Foi o relato de uma dessas sobreviventes, Maria da Conceição Andreza, por exemplo, que possibilitou o retorno da história de Pau de Colher às páginas de A TARDE, em 2010. No texto intitulado Em três dias de tiroteio, Pau de Colher acabou destruído, publicado em 6 de setembro, ela contou como protegeu, com o próprio corpo, a irmã Joana, que era ainda bebê. Maria Andreza passou fome e sede, escondida na caatinga, depois de ter visto a morte da mãe, da avó e duas irmãs, além da de outras pessoas que conhecia da convivência no acampamento.
Série especial de 2010 trata do massacre e das histórias da população
A tragédia que se abateu sobre a sua família não se esgotou no dia do tiroteio:
“Duas das minhas irmãs, fiquei sabendo depois, morreram em uma casa que foi incendiada, inclusive a que era ainda bebê”, contou. O incêndio foi provocado pelas forças militares. Os sobreviventes foram levados dias depois para Casa Nova. Foi a última vez que Maria Andreza viu o pai e irmãs sobreviventes. Ela e outras crianças seguiram para Juazeiro e depois para Salvador. Do abrigo foi levada por uma família, mas com o tempo foi tomando consciência de que a sua condição não era de filha, mas de trabalhadora doméstica. Outras crianças ainda passaram por mais traumas:
“Lembro de uma menina chamada Alzira, que era negra e foi a única que ninguém quis. Umas freiras é que ficaram com ela. Algum tempo depois, vi Alzira com uma farda de babá”, contou na reportagem publicada em 7 de setembro de 2010 intitulada Crianças que sobreviveram aos tiros foram dadas para adoção. Maria Andreza faleceu em janeiro deste ano.
Resgate
Pau de Colher demorou para ganhar visibilidade. Um dos primeiros trabalhos sobre o movimento foi publicado em 1969 por Raymundo Duarte, que foi professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Sob orientação do professor Thales de Azevedo (1904-1995), esse estudo, intitulado Movimento messiânico de Pau de Colher, ocorreu em meio ao desenvolvimento do Projeto Fundação para o Desenvolvimento das Ciências da Bahia. O projeto foi implantado na gestão de Anísio Teixeira (1900-1971) como secretário estadual de Educação e Saúde por meio de uma parceria entre a Universidade de Colúmbia, situada nos EUA, e o governo da Bahia.
“Seria muito interessante se conseguíssemos localizar o material de campo do professor Raymundo Duarte porque, sem dúvidas, esse seu trabalho é um marco sobre o movimento de Pau de Colher”, diz o doutor em antropologia e professor da Ufba Carlos Caroso.
Polêmico e conhecido por seus embates no ambiente acadêmico, o professor Raymundo Duarte, já falecido, não disponibilizou de forma conhecida até então o material que recolheu para escrever o texto sobre Pau de Colher, mas o seu trabalho é uma referência para quem se dedicou a conhecer mais sobre o movimento. “Ele foi meu professor e tinha uma atuação muito peculiar. Sem dúvida, a contribuição do seu trabalho foi fundamental para pesquisas posteriores. Há também a ligação desse trabalho com o projeto da Fundação para o Desenvolvimento das Ciências, ação que abriu um campo de estudos extremamente importante”, relata a doutora em antropologia e professora da Ufba Maria Rosário Gonçalves de Carvalho.
Novas abordagens
Os relatos de Maria da Conceição Andreza também tiveram desdobramentos em sua própria família. Um de seus filhos, Sílvio Roberto, publicou Massacre de Pau de Colher – Último foco messiânico no Nordeste Brasileiro. “Escrever essas memórias foi nossa odisseia, com muitas surpresas e revelações importantes. A complexidade das análises das possíveis causas, mais as condicionantes remotas que contribuíram para a formação daquele enredo, culminado em tragédia para centenas de famílias, não nos permitem levianamente acusarmos o agrupamento de Pau de Colher de ‘fanatismo’, aqueles que foram suas principais vítimas. O Estado foi, e continua sendo, o grande fomentador destas catástrofes”, conta Sílvio, que, desde a década de 1980, se dedicou a buscar informações sobre o episódio que tantas vezes ouviu ser narrado por sua mãe. A partir das pesquisas, localizou estudos como o de Raymundo Duarte, que conheceu e acompanhou em algumas viagens para Pau de Colher.
Talyta Almeida, sobrinha de Sílvio Roberto, também escolheu Pau de Colher como tema do seu trabalho de conclusão de curso (TCC) na Faculdade de Comunicação da Ufba, em 2011. Intitulado Massacre de Pau de Colher: últimas memórias, o documentário apresenta os depoimentos de outros sobreviventes traduzindo as histórias que Talyta cresceu ouvindo, especialmente por meio de sua avó, Maria Andreza. “Atrás das câmeras estava eu, futura jornalista, determinada a expor a fala dos remanescentes, mas também uma descendente de pessoas que morreram ali ou que tiveram suas vidas transformadas para sempre por esse episódio. E, fazendo jus ao título, já se foi a minha avó Maria de Andreza, que apesar de tantas perdas tinha uma risada gostosa de quem nunca se rendeu à dor”, completa.
Essas lições são necessárias para ensinar ao país que ele ainda precisa aprender a se reconciliar com uma parte considerável do seu povo. E não adianta o braço armado do Estado se esforçar para punir, pois Pau de Colher, assim como outros movimentos, aponta que os ecos sempre encontram uma forma de ressoar até o futuro.
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantêm a grafia ortográfica do período Fontes: edições de A TARDE; Cedoc A TARDE. Informações sobre o livro Massacre de pau de Colher – Último foco messiânico no Nordeste Brasileiro podem ser obtidas via o e-mail arte.rhema@yahoo.com.br.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia