Com a "Campanha do Tijolo" foi inaugurado o hospital Santo Antônio no ano de 1983
As receitas empresariais de sucesso pregam a prática de criatividade e ousadia que, se somados ao carisma do gestor rendem milhões. Se ela ou ele tiverem boas ferramentas na área de comunicação, o negócio se torna ainda mais sólido. Irmã Dulce exercitou à perfeição essas habilidades.
Para transformar um galinheiro em uma obra que inclui complexo hospitalar moderno, com espaço para pesquisa e formação, e uma instituição sócio-educadora, ela não fez nenhum curso de gestão. O combustível foi a vontade de diminuir ou fazer desaparecer o sofrimento alheio.
O corpo franzino não impediu a velocidade do cérebro para criar caminhos que viabilizassem a Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), uma instituição-referência. De alicerce sólido a ponto de resistir à ausência física da sua fundadora, a Osid tem números que impressionam.
São quatro milhões de atendimentos ambulatoriais por ano em uma rede que é totalmente ligada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Além do Hospital Santo Antônio, há também o Hospital Infantil e o Centro Geriátrico.
A Osid tem centros de referência em áreas tão diversas como reabilitação física e motora até tratamento contra a dependência ao álcool e outras drogas.
Além disso, passou a administrar unidades de saúde externas à sua rede como os hospitais São Jorge, em Salvador; do Oeste (Barreiras); Eurídice Santana (Santa Rita de Cássia); da Criança, em Feira de Santana e Regional Dr. Mário Dourado Sobrinho, em Irecê.
"O foco de Irmã Dulce sempre foi atender o maior número de pobres e com a melhor qualidade possível", destaca Maria Rita Pontes, sobrinha de Irmã Dulce e sucessora no comando da Osid.
Um episódio relatado por Maria Rita ilustra como Irmã Dulce tinha noção sobre a força do marketing. Antes da construção do Cine Roma, o cartão de visitas do Círculo Operário, ela estava atenta à arquitetura.
"Ela disse que a obra tinha que ter uma bela fachada, pois assim as pessoas iam contribuir, pois ninguém quer ajudar o que não vê", relata Maria Rita.
Inovação
Em 1986, Irmã Dulce sonhava com a construção de um centro geriátrico. Sua visão foi tão avançada, que a Osid estruturou a primeira residência médica nessa área na Bahia, quando ainda não se falava com tanta ênfase em aumento da média de vida no Brasil.
Foi esse mesmo insight que usou para defender sua proposta de montar um centro de reabilitação para quem apresentava limitações físicas ou motoras. "Ela tinha certeza que essas pessoas na enfermaria teriam poucas chances de sobreviver. Esse sonho estamos realizando, atualmente, com o centro de reabilitação cada vez mais atualizado. Mesmo os internados têm oportunidade de estudar e outros foram reintegrados a suas famílias", acrescenta Maria Rita.
Criação
Para Irmã Dulce se a ideia nasceu era porque podia ser levada em frente. O assessor de Memória e Cultura da Osid, Osvaldo Gouveia resgata um dos muitos jeitinhos que ela deu para ampliar o hoje Hospital Santo Antônio.
Em meio à "campanha do tijolo" -que consistia em cada um doar quantos pudesse- chegou a notícia que a Prefeitura de Maragogipe iria oferecer um caminhão cheio das peças. Ao receber a informação, Irmã Dulce comentou que ia avisar a imprensa para fazer o registro.
O que ela não imaginava era o efeito em cadeia desse seu comentário. " A história se espalhou e no dia marcado apareceu não apenas o caminhão de Maragogipe, mas de Cachoeira e de São Félix", conta Gouveia.
Em meio a tantas atividades, Irmã Dulce sabia como ninguém usar a paciência na hora certa. Foi assim que passou horas no escritório de um empresário que andava rondando em busca de recursos. O problema é que ele não queria recebê-la e deu ordens nesse sentido à secretária.
Irmã Dulce disse à moça que não tinha problemas e ia esperar. Passaram-se horas até que em um vacilo da secretária ela conseguiu entrar na sala. Ao perceber a aproximação, o empresário se escondeu debaixo da mesa.
"Irmã Dulce chegou e disse: ' meu filho, o lápis que você está procurando aí embaixo está aqui em cima da mesa' ", relata Gouveia, em meio a uma gargalhada. É um exemplo do raciocínio rápido que ela tinha.
E tudo isso em meio a muito trabalho, pois Irmã Dulce era uma workaholic, adjetivo que os empresários modernos exibem com orgulho.
Mas o hábito de trabalho intenso era praticado com apenas 25% da capacidade respiratória. Além disso, ela andava o dia inteiro e ainda tinha fôlego para fazer visitas surpresas no hospital, durante a madrugada. O objetivo era checar se a orientação dos prontuários estava sendo seguida criteriosamente .
"Não resta dúvida que Irmã Dulce conseguiu transcender a ideia de filantropia. Sua obra tem sido uma lição de humanização da medicina", analisa o médico Marcos Luna, PhD em transplantes por Harvard e que tem como um de seus focos de estudo a relação entre a prática médica e a cidadania.
Atualmente, Luna faz supervisão do programa Mais Médicos por meio da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia (Sesab). "É muito importante o que se vem fazendo na linha de prevenção e acompanhamento de saúde da família. Irmã Dulce foi pioneira nesse sentido", completa.
A TARDE publica neste domingo, 25, caderno especial sobre a vida e obra de Irmã Dulce. A revista MUITO também traz uma entrevista especial com a sobrinha do Anjo Bom da Bahia, a jornalista Maria Rita. Confira nas bancas!