Meninos e meninas que carregam as marcas da violência urbana, sem nem ao menos terem atingido a maioridade. As balas perdidas, tentativas de assassinatos e disparos acidentais são as principais causas que levam crianças a ficar tetra ou paraplégicas na capital paulista. Dos 97 pacientes, entre 1 e 16 anos, que estão em tratamento na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) - referência nacional no atendimento - 48% perderam o movimento das pernas e braços em decorrência das armas de fogo.
No topo do ranking dos motivos que levaram as crianças a passar o resto da vida em cadeiras de rodas, as ocorrências provocadas por tiros de revólver superam até mesmo os acidentes de trânsito, que são responsáveis por 30% dos casos. ?No mundo inteiro, a razão principal para a lesão medular em crianças é a batida de automóveis?, afirma Antônio Carlos Fernandes, diretor clínico da AACD. ?Aqui em São Paulo, as armas de fogo lideram as estatísticas. Isso só é visto em cidades que estão em guerra.?
Com o sonho de ser jogador de futebol, Rodrigo Miranda, hoje com 11 anos, ainda tem um pouco de dificuldade para entender porque foi obrigado a mudar de planos. Ele não tinha completado nem o seu quinto aniversário, quando foi atingido por uma bala perdida na porta de sua casa, no Jardim Elisa Maria, zona norte de São Paulo.
?Eu ainda posso sentir o cheiro desse dia. Saí para comprar uma chuteira para ele, mas não deu tempo de entregar o presente?, conta o pai do menino, Sebastião Miranda. ?Cheguei de manhã no bar que eu montei na parte de baixo do meu sobrado e saiu uma briga. Ouvi os disparos e olhei para o Rodrigo. Ele estava no chão e nunca mais conseguiu andar sozinho?, diz Sebastião ao lembrar do caso, que aconteceu no início do ano 2000 e deixou o caçula - de seus três filhos - paraplégico.
A família precisou mudar toda a rotina da casa. ?O Rodrigo precisa de ajuda para tudo, até para ir ao banheiro?, conta a mãe, Lindalva Miranda, que abandonou o trabalho de ajudante de cozinha.
Violência dentro de casaSe por um lado, as crianças estão suscetíveis às conseqüências das balas perdidas e dos criminosos quando estão nas ruas, por outro, nem todas estão seguras quando ficam dentro de casa. Apenas nos primeiros 31 dias de 2007, foram registradas no serviço 181, o Disque-Denúncia, 497 acusações de ações violentas contra crianças de São Paulo, a maioria cometida por pais ou parentes próximos. É uma média de 16 agressões por dia no Estado.
Os números computados no Disque-Denúncia cresceram 8% comparados ao mesmo período do ano passado, quando foram 460 telefonemas sobre violência doméstica.
De acordo com o Instituto São Paulo Contra Violência (SPCV), que administra o 181, os crimes caseiros só perdem em quantidade para as denúncias de tráfico de drogas que, só em janeiro deste ano, foram responsáveis por 3.623 ligações feitas ao serviço.
Quem lida diariamente no atendimento de ocorrências de violência doméstica, como os conselheiros tutelares, por exemplo, afirma que sobram histórias deste tipo, espalhadas pela cidade. ?Passe uma semana aqui no atendimento. É o suficiente para colecionar relatos. São famílias desestruturadas que expressam a falta de apoio, oportunidade da pior maneira possível, agredindo seus filhos?, afirmou Odette Vieira, 81 anos, que está em sua quarta gestão no conselho tutelar da Lapa, zona oeste.
Em todo ano passado, foram 5.093 chamados ao Disque-Denúncia sobre maus-tratos contra a infância e a adolescência.
Das ligações realizadas, de acordo com o balanço do SPCV, somente 5 casos de violência doméstica contra menores de 18 anos foram solucionados.