Roger Waters The Wall traz o líder do Pink Floyd e seus temores
O cantor, compositor e ex-baixista do Pink Floyd, Roger Waters, é um homem atormentado pelo fantasma da guerra. Tentar impedir que artistas como Gilberto Gil e Caetano Veloso façam show em Israel é apenas um dos sintomas disso. E ele tem motivos de sobra: não só seu pai, como também o avô, tiveram as vidas ceifadas em batalhas travadas nas duas Grandes Guerras. No caso do pai, Roger era ainda um bebê da Inglaterra quando a família soube que ele não voltaria mais para casa.
O que torna o caso mais dramático é que só quando foi chegando à meia-idade Waters conseguiu sublimar o trauma. E o fez com uma pegada freudiana: de tanto sonhar com a morte do pai, um dia sonhou que ele próprio o matava. A partir de então, intuiu que não mais teria o mesmo sonho.
Esta é uma das revelações que ele faz no filme Roger Waters The Wall, dirigido pelo músico e o design de turnê Sean Evans, que terá exibições especiais no UCI Orient Shopping Barra nesta terça-feira, 29, às 20 horas, e nos dias 3 e 4 de outubro. Mas, a julgar pelas sequências do longa, este fantasma está longe de ser exorcizado.
Ele está por trás de cada movimento de Waters, tanto nas imagens do show The Wall, que levou para vários países entre 2011 e 2013, como nas dramatizações que protagoniza fora do palco.
Viagem na memória
O filme, que assim entrelaça megaconcerto com cenas ficcionais ou documentais, nada tem a ver com o clássico The Wall, de Alan Parker, baseado no álbum duplo homônimo que o Pink Floyd lançou no final dos anos 70.
Em certo sentido, é um road-movie na contramão, com Waters em busca de seu passado. Há cenas idílicas nas quais ele dirige uma limusine preta pelas estradas margeadas de verde da Europa. Vai visitar os cemitérios onde descansam o pai e o avô e um memorial italiano, à procura de um sentido para a matança indiscriminada. No percurso, conversa e faz especulações filosóficas com parentes e filhos e desabafa com um barman que não entende sua língua.
O incrível é que Waters até convence como ator, se bem que muitas vezes não se sabe se ele está representando de fato ou se a câmera está captando um diálogo real. Mas a dor que o atormenta é transparente, e às vezes se transfigura em ódio, como nas encenações de ditador de um exército de martelos que ele personifica no show.
Depois de refletir diante da lápide do senhor Waters, ele saca da bolsa um trompete e assopra uma espécie de réquiem. Em breve, os estrondos da guerra se farão ouvir, primeiro por meio de um avião bombardeiro que passa rente à torre do mausoléu. É esta imagem que fará o link com o concerto grandiloquente no qual Waters e sua banda se apresentam enquanto um enorme muro é erguido.
No fundo do palco, o mesmo avião despeja várias cruzes e símbolos ideológicos e de megacorporações capitalistas, todos na cor vermelha. Quando eles despencam, um mar de sangue se espalha. A mensagem é clara, mesmo se não fossem projetados retratos de vítimas da violação dos direitos humanos de todo o mundo (inclusive o brasileiro Jean Charles de Menezes, a quem o concerto é dedicado): Waters está denunciando os algozes da humanidade, os senhores da guerra e ditadores, ao tempo em que homenageia suas vítimas mais notórias.
Porões do subconsciente
O filme é costurado por imagens recorrentes de portas e corredores sombrios que se sucedem. São os compartimentos obscuros da memória, os porões do subconsciente nos quais Waters mergulha para enfrentar os seus traumas.
Chega a ser comovente - se não fosse um exercício de arte conceitual - a forma como ele reabre as feridas em público. As lágrimas desabam quando relê a carta que noticia a morte do pai. Sua estetização da dor - ou, antes, da amargura - possui inegáveis momentos de beleza e sensibilidade poética. Há abstracionismos ao estilo Pink Floyd na relva europeia - espantalhos negros, uma cena de execução nazi.
A morte está em toda parte no filme, com sua cor negra e seus sepulcros gélidos, e assusta. Ela é ostensiva e te esmaga com a lembrança de sua inevitabilidade. Mas é importante não perder de vista que o show The Wall, com sua teatralidade e monumentalidade, é o monstro vaporoso que centraliza toda a trama e absorve as imagens extra-palco como uma esponja.
À certa altura, a câmera mergulha na plateia e colhe expressões faciais sob o impacto da música. Há uma certa angústia ali - uma perturbadora atmosfera de impotência que às vezes se mistura com um êxtase ou um leve sorriso. Os olhares refletem este sentido de fragilidade e desesperança que Roger Waters quer transmitir, como se todos fossem mais um tijolo no muro. E prestes a serem passados num moedor de carne.
Dimensão cinematográfica
Plasticamente, o filme funciona. O cinema, com sua tela grande e som de alta definição, tem a capacidade de potencializar as situações. E quando o que é projetado é um concerto de rock de contornos operísticos e cenários suntuosos, o resultado é quase uma apoteose - não fosse a autotortura em cinema 4K de Roger Waters um tanto persistente e destoante da cor grisalha de seus cabelos.
Roger Waters The Wall é entretenimento com fio condutor dramático e propósito messiânico. Um discurso antibelicista proferido à moda de um führer e que explode e dilacera com os sons e luzes do rock espetacularizado. Não há um fio de esperança aqui.
Os retratos dos mártires do totalitarismo e do terror - incluindo os também brasileiros Sérgio Vieira de Mello e Chico Mendes - são tijolos em um muro gigantesco que pode desmoronar a qualquer momento sobre as nossas cabeças.