No filme, os estrangeiros são os vilões e os nativos têm que lutar com as armas que possuem contra a ameaça de longe e de perto
“Bacurau”, novo trabalho de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um daqueles filmes que nos faz perguntar se poderia existir em outro momento senão aqui e agora. É difícil até de ser apresentado, já que qualquer detalhe pode ser considerado spoiler. No longa, durante duas horas o público é inserido num vilarejo fictício que dá nome ao filme, localizado a alguns anos no futuro, no sertão pernambucano. Um lugar que, apesar dos horrores, parece bastante acolhedor.
Este é um filme coral, onde cada personagem parece ter seu momento marcante para contar uma história de resistência. Não é um filme de protagonistas. “Bacurau” mostra a importância do coletivo na luta dessas sobrevivências e permanências identitárias (não só brasileiras e nordestinas, mas latino-americanas).
“Acho que esse é um filme sobre o Brasil, sobre nossas observações de como são nossas relações entre as regiões, como o nordestino é representado”, conta Juliano Dornelles em entrevista para o Portal A TARDE.
“Bacurau” é o primeiro longa de Juliano a ser lançado, no entanto ele filmou um anterior, chamado “Atelier”, que ainda não está finalizado. “Está em processo de construção. É um filme bem diferente de “Bacurau”, mas também é um filme que pode ser considerado dentro dessa linha de filmes de gênero. É algo mais próximo de um filme de terror psicológico, com muita fantasia envolvida”, define o cineasta.
No vilarejo fictício, Filho e Dornelles imprimem uma cara conhecida do cinema faroeste para subverter a narrativa. Os estrangeiros são os vilões e os nativos têm que lutar com as armas que possuem contra a ameaça de longe e de perto. É uma obra madura e bem resolvida, tanto com suas origens quanto com suas referências.
O cinema de gênero não precisa se limitar aos elementos que o caracterizam, e Kleber e Juliano entendem muito bem isso. “Bacurau” é uma obra cheia de símbolos e comentários extremamente relevantes para o Brasil de hoje, tornando museus e escolas em uma ferramenta essencial para combater a ignorância e a violência.
Diferente dos clássicos filmes de invasões alienígenas, quando extraterrestres parecem enxergar apenas os Estados Unidos no mapa, o perigo vem de “nave-espacial” para assombrar um país latino. A tecnologia afrontosa evidencia o potencial de observação (o controle) e exploração de células colonizadoras, que ainda acreditam em uma supremacia individual e/ou racial.
Cinema universal
A universalidade de “Bacurau” sempre foi algo presente no roteiro. Kleber conta que se surpreendeu como muita coisa do mundo real foi chegando e alcançando o texto escrito por ele e Juliano. “Acho que o roteiro é fruto de uma série de observações sobre o mundo”, avalia Kleber. “Os roteiros já eram aparentemente muito locais, mas eles tinham uns conflitos que são muito universais e isso faz ele parecer um filme mais sobre um estado de espírito pro mundo”, diz.
Talvez a coisa mais impressionante que Kleber e Juliano fazem aqui é dar unidade a uma narrativa tão heterogênea e extrair disso uma franca noção de entretenimento. Enquanto “O Som ao Redor” (2012) sintonizava com o cotidiano recifense de forma crua e “Aquarius” (2016) estabelecia quase uma heroína clássica diante de um conflito nas relações de classe e poder, “Bacurau” é um reflexo imediatista e necessário da distopia que o Brasil vive, em que a abordagem não poderia ser outra senão o extremo (ou até mesmo o óbvio).
Sem meios termos ou meias palavras, sutilezas ou concessões, o filme expõe suas alegorias de maneira quente e contumaz - transitando do drama social “pequeno”, passando pela ficção científica (que utiliza muito do imaginário visual setentista e oitentista), até o faroeste ultra-violento que não deve nada a Tarantino.
É um cinema visceral e impactante, visualmente imaginativo e dramaticamente poderoso, sem vergonha de abraçar convenções de gênero ou de subvertê-las. E ainda mantém uma universalidade temática cujas especificidades estão mais no senso de humor e nos subtextos políticos do que propriamente na sua essência: uma luta coletiva e destemida por sobrevivência.