O esforço do governo federal para convencer senadores oposicionistas a prorrogarem a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) até 2011 reacendeu o debate de 12 anos sobre a reforma tributária. Ambos os lados concordam, em tese, que a crescente carga de impostos deve ser reduzida, começando pela redução no número de formas da União, Estados e municípios arrecadarem. Quase 100, segundo especialistas.
Apesar disso, divergências surgem rápido quando se discute repartição do montante retirado do contribuinte, que deve chegar este ano ao recorde de R$ 800 bilhões. A concentração de 70% do bolo tributário nas mãos do governo federal sustenta críticas de políticos e empresários, sobretudo quando se observa avanço dos gastos da União. Os governistas, por sua vez, preferem apresentar indicadores econômicos positivos.
Economistas e tributaristas de diversas correntes de pensamento ouvidos pela A TARDE acreditam em saídas técnicas para esse impasse, mas todos concordam que o consenso político em torno de qual sistema tributário seria adotado ainda está longe de ser obtido. O governo promete enviar até o fim do mês ao Congresso uma proposta de reforma e o próprio presidente já disse que será difícil chegar a um acordo global.
Burocracia – “A carga tributária elevada é resultado direto da máquina burocrática da União, que gasta muito e gasta mal”, dispara Ives Gandra Martins, advogado tributarista há 50 anos. Cético quanto à aprovação da reforma em debate desde 1995, ele acredita que o primeiro impasse virá da unificação de impostos federais. A razão disso estaria na tendência do governo elevar a alíquota unificada como forma de assegurar uma arrecadação sem perdas.
Martins acha impossível conciliar interesses da União, Estados e municípios quando se propuser cobrar um futuro imposto sobre circulação de mercadorias apenas no destino e não mais na origem. Isso prejudicaria os Estados produtores, liderados por São Paulo, cujos governantes estão descrentes de medidas compensatórias como as propostas em desonerações anteriores. “Os municípios também terão de ser convencidos a perder arrecadação”, disse. A única coisa que não mudaria a seu ver é a dominância da receita federal e, novamente, o aumento da carga tributária. Para ele, os recordes sucessivos do Fisco se devem mais à coação de seus agentes sobre empresas legalmente constituídas do que ao alegado crescimento da economia e à maior eficiência da máquina arrecadadora. “Havia mais respeito ao direito tributário nos tempos da ditadura e os verdadeiros sonegadores continuam livres”, atesta.
Gestão – Enquanto não é votada a reforma que prevê a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), unindo alíquotas federais, e o Imposto sobre Vendas a Varejo (IVV), juntando num único percentual nacional os estaduais ICMS com os municipais ISS, o debate gira em torno dos R$ 40 bilhões da CPMF em 2008.
A continuidade da contribuição “provisória” de 1996 questiona a qualidade de gastos federais, dominados por compromissos financeiros, mas que também chamam a atenção pela conta do funcionalismo, “inchada” nos últimos anos segundo a oposição. O governo não vê onde cortar despesas e alerta para grave desequilíbrio fiscal, caso perca o imposto do cheque. Mas ministros e parlamentares aliados acenam mais recursos para a saúde, em crise.
Em dez anos, a contribuição foi prorrogada três vezes e a alíquota inicial de 0,2% saltou para os atuais 0,38%. Foram arrecadados com ela R$ 186 bilhões até agora e a carga tributária brasileira chegou a 35,21% do PIB em 2006, com arrecadação de R$ 817,9 bilhões, uma das cinco maiores do mundo. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgada semana passada revela que a maior parte dos recursos da CPMF não foi direcionada a investimentos diretos no Sistema Único de Saúde (SUS), contrariando a finalidade da contribuição fixada por lei.
Segundo a pesquisadora da FGV Tathiane Piscitelli, essa irregularidade mostra também pouca transparência das contas públicas e mau gerenciamento de gastos federais. Na sua análise da arrecadação da CPMF entre 2001 e 2006, percebeu, por exemplo, que os recursos custearam no ano passado apenas despesas correntes do governo, como pagamento de diárias e auxílio-transporte. “Com a Desvinculação das Receitas da União (DRU) esse quadro se agravou e o contribuinte não sabe para onde seu dinheiro foi”, disse.
Sonegação – Para a professora Tathiane, a carga tributária reflete a ainda expressiva sonegação de impostos no País, estimada em 30%. Para compensar os valores que perde para a informalidade e o crime, os governos de todos os níveis criaram um sistema arrecadador amplo e complexo que incide desde a produção até o consumo, passando por salários e movimentação financeira. “A lei de responsabilidade acabou incentivando o aumento da carga, pois o administrador público prefere buscar receitas que controlar despesas”, disse. Opinião igual tem o ex-ministro do Planejamento João Paulo Reis Velloso. “Os gastos e os desperdícios públicos cresceram assustadoramente. Além disso, em qualquer parte do mundo burocracia e corrupção andam juntas”. Há, contudo, aqueles que acreditam que a crítica ao gasto público serve de cortina de fumaça para o verdadeiro motivo da carga tributária não encontrar freio na sua escalada. “Os juros ainda estão comprometendo a maior parte do superávit primário das contas públicas”, diz João Sicsú, diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do governo federal.
Injustiça – Para ele, a questão central deveria ser não o tamanho da arrecadação, mas onde ela incide. “Há uma injustiça tributária, na qual alguém tem de ceder para aliviar outro”, disse, admitindo que a concentração dos impostos na União “paralisou o debate” e que rendimentos financeiros e patrimônio poderiam contribuir mais do que salários e consumo. Para ele, a discussão em torno do “inchaço” da máquina pública deve acabar apenas com o crescimento mais vigoroso da economia.
Para o governador da Bahia, Jaques Wagner, apenas a reforma tributária poderia colocar um fim nas “discussões cíclicas sobre a renovação da CPMF”, toda vez que ela está prestes a expiar. Outra expectativa sua é de que a guerra fiscal entre Estados, “que prejudicou a Bahia”, possa também perder fôlego com o ICMS unificado.