Ao longo da vida profissional, o contador José Antonio Moreira Icó assumiu inúmeros cargos na Previdência Social, entre eles, a chefia das secretarias Nacional de Benefício e Regional de Arrecadação e Fiscalização. Foi dessa proximidade com a área fiscal que José Antonio despertou o interesse por entender o fenômeno da sonegação. Mesmo tratando-se de um tema pouco explorado na academia, o profissional o escolheu para ser esmiuçado na tese de doutorado, elaborada durante o Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa, apresentada em novembro último, mostra as Dimensões da informalidade no mundo dos negócios: procedimentos informais adotados por empresas formais. Em tempos de freqüentes escândalos nacionais envolvendo sonegação fiscal, o professor-doutor Icó concedeu esta entrevista à repórter Danniela Silva. Ele aponta os procedimentos mais usuais adotados pelas organizações formais, responsabiliza, em parte, a alta carga tributária, discute as conseqüências da sonegação para o País e os riscos para o empresário que adere aos procedimentos ilícitos.
José Antonio Moreira Icó
Como se configura o fenômeno da sonegação fiscal?
Decorre de qualquer modificação manifestada no patrimônio empresarial sem registro de sua inteireza e feição original, visando à sua omissão, total ou parcial, no pagamento de tributos. O ciclo de vida da sonegação fiscal, resumidamente, é composto de duas etapas. A primeira delas é a idealização do ilícito, compreendendo as fases intelectual (percepção da necessidade de maior ganho com menor custo), psicológica (expectativa de satisfação com a sonegação e esperança de impunidade) e de planejamento (seleção de meios disponíveis, mecanismos e instrumentos adequados para o ilícito). A segunda é a materialização, composta das fases da execução (exercício da função de meios, mecanismos e instrumentos) e da conclusiva (perdas para o erário público e ganhos para o sonegador).
Quais os procedimentos informais mais utilizados pelas empresas formais?
Existem instrumentos já conhecidos da sociedade, como o caixa dois, a nota fiscal adulterada (fria), paraísos fiscais, agentes laranjas, lavagem de dinheiro, acordo com doleiros ou lobistas (responsáveis pelas intermediações de corrupção), entre outros. A engrenagem da sonegação fiscal conta, na verdade, com o uso fraudulento dos meios disponíveis no patrimônio da empresa e com a condição de adulteração dos registros contábeis, fiscais e administrativos. A engrenagem, todavia, necessita de mecanismos específicos para cada modalidade de sonegação fiscal.
O senhor poderia exemplificar isso?
Só para citar alguns (ilícitos) relacionados com o ICMS, que têm reflexos negativos para o Imposto de Renda e outros tributos: falta de registro de documentos fiscais (como, por exemplo, a nota fiscal), acrescida de outros atos fraudulentos, como suprimento de caixa não documentado, entradas ou pagamentos não contabilizados, omissão de receita ou estoques; aquisição e manutenção nos domínios da empresa de bens sem documentação fiscal ou com documentação fiscal inidônea e omissão de quitação de duplicata devido à insuficiência momentânea de caixa, quitada com dinheiro proveniente de receita não contabilizada, formando um passivo fictício.
O que estimula as empresas formais a adotarem procedimentos informais?
Primeiro, a carga tributária, que é sufocante. Os valores dos tributos são muito altos. Existem mais de 70 espécies deles, entre taxas, impostos e contribuições. Além disso, a empresa tem de cumprir uma infinidade de procedimentos, que são obrigações acessórias, para atender ao fisco. A declaração mensal dos tributos acarreta em sobrecarga de trabalho e recursos. Assim, muitas empresas abandonam as normas oficiais e partem para o ilícito, que é mais fácil e menos custoso.
Seguindo essa lógica, as empresas formais estariam sendo obrigadas a recorrer aos instrumentos informais?
De forma nenhuma. É difícil sobreviver com uma carga tributária sufocante e tendo que estar em dia com as obrigações tributárias, mas o empresário, antes de montar seu negócio, deve fazer uma projeção de todos os tributos e obrigações com o fisco. Caso perceba que não é possível honrar com eles, o melhor a fazer é desistir do empreendimento. O que não podemos é concordar em não pagar os tributos.
Mas é possível sobreviver dentro da legalidade, pagando todos os tributos?
Reconheço que é difícil, principalmente para as pequenas e médias organizações. As grandes empresas, normalmente, têm recursos suficientes para diluir os custos dos tributos. Já as menores sofrem mais dificuldades. A receita é menor, enquanto a concorrência é maior. Os tributos, portanto, passam a ser um elemento que precisa estar muito bem estruturado, planejado, para que as organizações sejam capazes de cumprir todas as obrigações. Fraudar não é um caminho aceito. Mas o problema é complexo. Muitas empresas sonegam porque os impostos são muito altos. Já as autoridades cobram os tributos elevados porque existe a sonegação.
Qual o melhor caminho para acabar com a sonegação?
Acredito que para acabar com a sonegação e a corrupção, que são dois males que seguem juntos, é necessário, primeiro, passar por um processo educacional. Eu não consigo ver as pessoas cumprirem suas obrigações e serem conscientes de seus direitos se não passarmos por uma mudança educacional. Como o ilícito empresarial é sistêmico, há inúmeras variáveis que interferem nesse sistema. Minimizar os impactos da sonegação e corrupção, portanto, exige uma espécie de pacto nacional que envolva a escola, o governo, as instituições, entidades religiosas, enfim, todos envolvidos em um processo educacional pedagógico.
Qual seria a participação do governo nesse processo?
O governo entraria não só nessa parte educacional como também teria de se comprometer a reduzir a taxação dos contribuintes a um nível suportável, condizente com o que a própria Constituição prevê, que só pode taxar de acordo com a condição de pagamento do contribuinte. Logicamente que a cobrança dos tributos é importante, porque o governo precisa proporcionar o bem-estar social, e isso só se faz com dinheiro. A sonegação, por sua vez, retira do governo recursos que poderiam ser conduzidos para políticas públicas de promoção da melhoria da qualidade de vida da população.
Existe um patamar ideal de carga tributária para o País?
Segundo os institutos de pesquisa, como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os tributos hoje representam 16% do PIB (Produto Interno Bruto), enquanto jamais deveriam ultrapassar os 10%. As empresas, por sua vez, comprometem cerca de 40% da receita só com o pagamento dos impostos e taxas.
Até que ponto a alta carga tributária pode ser responsabilizada pelo índice elevado de falência das empresas?
Em parte, ela é responsável, sim, mas o grande responsável mesmo é o despreparo dos empresários. Muitos não têm qualquer perfil para ser empresário. Muita gente se aposentou e resolveu montar uma loja, um negócio, sem qualquer formação de empreendedorismo. E como não fazem um estudo, um planejamento das obrigações tributárias, eles não conseguem permanecer no mercado ou passam a sonegar.
Como avalia a atuação da fiscalização no combate à sonegação?
A fiscalização é eficiente e tem se aprimorado. Todavia, é limitado o número de agentes de fiscalização para o universo de empresas.
Quais as conseqüências para o empresário que sonega?
O empresário, para cometer uma sonegação hoje, deve pensar muitas vezes. Ele deve estar consciente de que, no momento em que usa procedimentos ilícitos, estará no alvo da atuação dos órgãos fiscalizadores, que, detectando a sonegação, irão autuá-lo, podendo gerar conseqüências drásticas, como inviabilizar a continuidade do negócio. O governo, por sua vez, está ciente de que as empresas são importantes, pois geram recursos e empregos, e levá-las à extinção pode trazer danos sociais e econômicos. Muitas vezes, para salvar essas empresas que cometeram ilícitos, o governo oferece parcelamentos longos de dívidas. As empresas acabam sempre tendo o poder de negociar. O que me parece é que as empresas cometem ilícitos já seguras de que, lá adiante, poderão negociar a dívida.
O senhor acredita então que a política de parcelamento de dívidas do governo estimulam a sonegação?
De certa forma sim. Mas o governo fica na situação de ter de optar entre fazer cumprir a lei, penalizando a empresa, ou tentar recuperar as empresas por meio dos parcelamentos. O País não pode viver sem as empresas, elas são as molas propulsoras da economia de mercado. Mas, ainda assim, o governo não deveria oferecer tantas facilidades, como parcelamentos e reparcelamentos. Eu sou contra a permissividade dada às empresas que não cumprem os acordos firmados de pagamentos.
Quais os casos mais famosos de fraude tributária?
O caso da Schincariol, conhecido como Operação Cevada, foi considerado a maior operação de combate de sonegação fiscal do País. Polícia Federal, Ministério Público Federal e Receita Federal, em ação conjunta, conseguiram detectar inúmeras irregularidades fiscais, como utilização de liminares que impediam o recolhimento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviço) e IPI (Imposto sobre Produto Industrializado). O esquema envolvia empresas parceiras, que atuavam como laranjas e emitiam notas fiscais viajadas (mais de uma viagem com a mesma nota), entre outras irregularidades.
Houve também o episódio envolvendo a Daslu...
O caso Daslu, que envolve uma das lojas que comercializam as grifes mais caras do País, também é um escândalo recente. Pelo menos três pessoas, da alta administração da empresa, foram presas por suspeita de sonegação fiscal, formação de quadrilha, contrabando, falsidade ideológica e crime contra a ordem tributária. A terceira maior cervejaria do País, a Kaiser, também foi autuada pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, em razão de crédito fiscal de ICMS obtido em exportação de açúcar cristal sem comprovação de origem e transporte da mercadoria.