Kátia estreia no A TARDE como colunista
Entendo quando alguém come algo incrível ou recebe um Kandinsky no prato e exclama: isso é uma obra arte! Por aguçar e estimular sentidos, abrir as portas da percepção, provocar sensações, evocar memórias e sentimentos, a gastronomia pode ser considerada arte, admito.
Até porque a arte contemporânea assim o quis. Foi gulosa, quis a tudo experimentar, abocanhar, bulir, provocar. Foi carinhosa, abraçou a ingenuidade, o auto-didatismo, a cultura popular, o artesanato, a arte de rua... e por que não assumir uma relação simbiótica também com a gastronomia?
Mas confesso que resisti deveras até aceitar. Por ter uma formação acadêmica em belas artes, me tornei meio purista e achava que para ser "artista" seria fundamental um conhecimento mínimo de História da Arte e Estética, pelo menos.
Mas, pensando bem, para que serviria todo esse conhecimento para um cozinheiro, apesar da certeza de que a arte enaltece, liberta e dignifica as gentes? Penso que se o planeta estudasse um pouco de arte, uma pitada de filosofia e outra de antropologia, o mundo seria bem mais lindo.
Mas, voltando à questão prática, esse conhecimento seria fundamental para a criação de pratos incrivelmente deliciosos, estimulantes, sensoriais? Ou a base para estas criações poderia vir de outras fontes como a terra, a memória, a tradição, a criatividade, o talento e a intuição? Hoje penso que um cozinheiro candidato a artista não precisa de história da arte como disciplina preliminar, e aceito, sim, a Gastronomia como arte.
Quem sou eu para dizer que Adrià não é um artista? Até porque seus pratos mais se parecem instalações. E, detalhe (veja bem, detalhe!), soube que a comida é realmente deliciosa. Não é ótimo que, no fim das contas, a comida (a comida!) seja gostosa? Ou você esqueceu que estamos falando de comida?
É food!
E agora que eu já aceitei a Gastronomia como uma... modalidade artística, vai, preciso tocar no seu ponto nevrálgico na minha opinião: o sensacionalismo gastronômico.
Há mais de 10 anos, desde o boom dos blogs, a gastronomia entrou na moda e nunca mais saiu. Fomos atingidos por raios gourmetizadores, ungidos por reduções de balsâmico, abduzidos para El Bulli.
De uma hora para outra, todo mundo virou gourmet, gourmand ou, o que é pior, ambos. E deu-se a enchente. Febre de gadgets , le creuset, kitchenaid; cursos, escolas, universidades; um novo livro, um novo programa de tevê, um novo chef, um novo blog e perfil oportunista a cada minuto. E tem sido assim desde então. A globalização e o glam da cultura alheia atropelaram a pátria-língua e chique é ser foodie, participar de foodie experiences, ter foodtruck, comer street food. É food, colega, é food!
Tudo demais é sobra
É certo que se não fosse essa coqueluche gastrô, não teríamos acesso a ingredientes antes impossíveis e que hoje encontramos até na padoca da esquina. Sem falar em todo o acervo cultural que a gente adquire mergulhando na culinária de cada país, uma das melhores formas de conhecer as culturas dos povos.
Sou grata a isso, adoro essa diversidade e lambo os beiços sem distinção entre a moqueca de Dona Suzana, na comunidade do Solar do Unhão, e a Queixada à moda Ardenaise do Chez Bernard, logo ali acima.
Mas, quer saber? Somos muito deslumbrados e "tudo demais é sobra", como dizia a minha avó. Damos ibope a programas sensacionalistas onde a comida é abordada em ambientes ásperos, humilhantes, estressantes e piegas, estrelados por chefs algozes e crianças obrigadas a comportarem-se como adultos, estimuladas pelos mesmos pais que assinam petições e saem por aí escrevendo em pratos que comem cultura sem nem saberem o que é Lei Rouanet, só porque aquele chef ídolo falou que é legal. Ignorância de quem só descobriu agora que comida é cultura. Jura?
Enfim, quem sabe, assim como se deu com a crise da arte contemporânea, quando tudo já havia sido experimentado, e assim como na História da Arte, onde cada novo estilo que se alterna costuma ser uma espécie de negativa ao anterior, que a Gastronomia se canse e sossegue um pouco.
Que volte para casa parando na beira da estrada para comprar jaca ali e comendo beiju acolá; que encontre a mesa posta com pratos colorex e um fogão fumegante com feijão donzelo, arroz fresquinho, farofa de manteiga e bife a cavalo; que salve, ao menos em memória, as feiras de chão, os bolinhos de comida de mão, a comida dos recôncavos, dos índios, e maturis que queimam as mãos dos amorosos.
Por um prato de comida naïf! Só pra variar.