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A primeira comida que me endoidou, registrada lá no primeiro capítulo do livro da minha memória afetiva gulosa, foi a língua de boi que a minha avó Joana preparava, mais para mim do que para qualquer outro neto.
Isso porque, apesar de nunca ter-lhe dito o quanto amava aquilo, os meus olhos deviam brilhar muito, a minha boca devia salivar, e eu provavelmente devia fazer a cara de garota mais feliz do mundo depois de raspar o prato.
Minha avó me observava feliz e, vez por outra, os nossos olhares se encontravam rapidamente numa declaração velada de amor; era uma espécie de código, um segredo só nosso, que ninguém era capaz de perceber no meio daquele furdunço de família toda reunida nas férias para almoçar.
Aquele olhar fortuito, risonho e generoso, de cumplicidade entre nós, é a maior e melhor lembrança que tenho da minha avó. Muitos anos depois, inserida em alta na blogosfera gastronômica, ao ouvir pela primeira vez o termo "comfort food", imediatamente o traduzi para "a língua de boi da minha avó".
Então era aquilo... aquele quentinho que eu sentia bem no meio do coração, e que ia se espalhando pelo corpo inteiro em ondas de puro amor, quando ela punha aquela carne macia e suculenta ao lado do arroz branco, fresquinho e fumegante, que seria tingido em segundos por aquele encorpado molho ferrugem... aquilo era comida que conforta a alma, o coração, o ser, a pessoa toda. Claro!
Vó Joana
Minha avó foi uma cozinheira de conveniência que tomou gosto pela coisa. Para sustentar sozinha os seus sete filhos, ela lavava roupa de ganho e começou a fazer doces para vender, até se tornar cozinheira de uma pensão. Aprendeu rápido e, em pouco tempo, a fama dos seus bifes de fígado, lombo de panela, mantinha de carne do sol com farofa d'água e galinha ao molho pardo correu solta, rendendo-lhe o status de exímia cozinheira.
Isso sem falar nos bolos de puba e aipim, que assava em fornos de lata de querosene; as cocadas que expunha à venda na janela da pensão, e ainda encontrava tempo todos os dias para encher uma cesta com seus famosos quibes de arroz, vendidos nas ruas da cidade por um moleque chegado.
A cozinha da mamãe
Já a minha mãe, apesar de ter se casado como manda o figurino, numa época em que esperava-se que a mulher se dedicasse exclusivamente às cousas do lar, tinha uma loba dentro dela, de modo que, para bancar a sua porção livre e independente, ela teve que se desdobrar em três turnos: de manhã dona de casa, à tarde funcionária pública, à noite professora. E também tornou-se uma ótima cozinheira, por conveniência. E eu, sua assistente.
Pode ter sido a minúcia do corte dos temperos, a ordem e limpeza da sua cozinha, a brancura dos panos de prato passados a ferro de carvão, a forma como montava a salada de tomates, como dispunha os alimentos na geladeira, a devoção com que lavava as velas do filtro de barro... pode ter sido a poética das toalhas plásticas com padronagem de frutas e flores da mesa da cozinha, o cheiro de café à hora da Ave Maria, o fascínio pelo brilho das lâminas e do fogo, ou a sua omelete de carne com farofa de manteiga que me levaram, definitivamente, ainda que eu não soubesse à época, para a cozinha.
O fato é que, hoje, toda vez que eu ligo dizendo que estou indo para a sua casa, e ela vai logo perguntando o que eu quero comer, nem preciso pensar: omelete de carne com farofa de manteiga, lógico. No que ela retruca sempre com o mesmo muxoxo de boca torta: "Mas, omelete?". Fazer o quê, se este é, até hoje, o meu prato predileto?
O problema é que a mamãe pendurou o avental faz tempo, e sob o argumento de que não sabe mais cozinhar para mim porque eu me tornei uma cozinheira "sofisticada", como me vê, e de sua comida guardo apenas as lembranças.
É, mamãe deu zig, contratou uma cozinheira, explicou a trama da omelete, e hoje em dia só quer saber de encaixar a almofadinha ali na curva da lombar e refestelar-se com a comida alheia. Acho justo, digno e mais uma vez quem vai cozinhar para ela neste domingo das mães, com todas as pompas, sou eu. Uma coisa na linha "eu te darei o céu, meu bem, e o meu amor também".