O jurista português coordena o Centro de Apoio ao Sem Abrigo (Casa), em Coimbra
Pela primeira vez em Salvador, o jurista português Marco Ribeiro Henriques diz que viu menos pessoas vivendo nas ruas do que esperava. Ele participou do II Encontro do Grupo de Estudos e Pesquisa População em Situação de Rua, Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado da Bahia, no dia 30 de outubro, quando apresentou as experiências de integração do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (Casa), em Coimbra, onde é coordenador de uma das nove delegações da organização não governamental no país. “No caso português, nós fixamos que é pessoa em situação de sem abrigo quem não tem condições condignas de habitabilidade. E nós, para se ter uma ideia, incluímos o povo cigano, que vive de forma nômade e em tendas eventualmente, colocamos pessoas que vivem numa casa abandonada, numa caverna”. Nesta entrevista, ele fala sobre direitos humanos, a visão do Brasil no exterior e a importância da cultura em relação ao comportamento.
O senhor coordena o Centro de Apoio ao Sem Abrigo (Casa), em Coimbra, e está pela primeira vez em Salvador. Nessas duas semanas, qual a sua percepção sobre a integração da população em situação de rua por aqui?
Numa primeira análise, parece-me que são muito parecidos os problemas das pessoas em situação de rua – nós chamamos pessoas em situação de sem abrigo – com aqueles que nós também temos em Portugal em uma escala mais reduzida. Mas do pouco contato que tive, dá-me a ideia de que as patologias são as mesmas. Fiquei surpreendido porque esperava encontrar mais, mas é uma visão que já trago viciada do que pensava achar em Salvador. Não encontrei muitas pessoas em situação de rua, não visivelmente, mas estou cá há duas semanas. Conheci, talvez, 10% de Salvador.
Como o Casa atua?
Nós fazemos uma intervenção com as pessoas sem nenhum tipo de regramento espiritual, evangelizador tampouco. Tratamos as pessoas de forma abnegada, procurando perceber o que as motiva naquele processo, e, a partir daí, aquilo que fazemos tem muito a ver com uma intervenção estruturada entre várias organizações, umas formais, outras não formais, também governamentais, em projetos muito específicos que dão respostas muito específicas de saúde, de emprego, de habitação, de formação. No caso do Casa, procuramos fazer a partir de uma necessidade primária do cidadão, que é a alimentação. O Casa nasceu para distribuir refeições quentes para quem vivia na rua, isso há 12 anos. Depois foi evoluindo porque sentimos que só a refeição não era suficiente como ferramenta para chegar à pessoa.
Qual o caminho que encontraram?
Procuramos trabalhar na intervenção com um projeto que chamamos Casa Amiga, em que apoiamos pessoas em situação de vulnerabilidade de forma multidisciplinar para evitar precisamente que a pessoa caia na rua. Acreditamos que quando a pessoa cai na rua, depois o processo é realmente mais difícil para conseguir que haja uma reentrada naquilo que é a vida em sociedade. Nós cremos que alguém que vive na rua está sofrendo uma violência por parte do Estado na medida em que o direito à habitação é também um direito constitucional. Quando sujeitamos pessoas a essa vivência podemos falar de uma relação de Direitos Humanos do Estado para com elas.
Há os que se sensibilizam com essa situação, mas não se identificam com as formas predominantemente religiosas de assistência. A seu ver, o que pode ser feito?
Venho do ramo do direito, não sou assistente social, não sou psicólogo, faço doutoramento no âmbito do direito, e, portanto, minha experiência só posso responder como cidadão, foi assim que conheci o Casa. Foi efetivamente de sentir a necessidade de incluir aquelas pessoas no modus vivendi da organização da sociedade. Porque são pessoas a quem nós viramos a cara todos os dias, porque nos incomodam no sinal para pedir um trocado, porque não gostamos muitas vezes de ver e sermos confrontados com aquela realidade, e, portanto, a necessidade de os trazer aquilo que eu considero adequado, que é o trato social. Socializar as pessoas foi o que mobilizou encontrar no Casa o espaço onde eu pudesse realmente atuar voluntariamente. Considero que, particularmente, essas pessoas têm muito que ver com o estado de ressocialização a que estão sujeitas. Eu posso encontrar um emprego para uma delas, mas no dia seguinte ela não vai ter uma escova de dentes, não vai estar apresentável, pode não chegar na hora por não ter relógio; então, uma série de circunstâncias e competências que as pessoas foram perdendo ao longo do processo social degenerativo. É um processo difícil, claramente, temos entropias que vêm de nossas pertenças culturais, sociais e até de segurança, mas, quando me perguntam o que fazer com alguém que está dormindo nas ruas, eu costumo sugerir que leve um lanche, porque comida é a necessidade mais primária que um ser humano tem e, portanto, não incomodar ninguém que está dormindo na rua. Pode perguntar por que está na rua e conversar. Acho que a socialização é efetivamente um ponto de partida, trazê-los aquilo que é o nosso trato social.
Entre 2015 e 2018 o senhor foi coordenador do grupo de juristas da Anistia Internacional. O Brasil mudou muito nesse período, a partir do impeachment de Dilma Rousseff. Qual a visão da comunidade internacional sobre Direitos Humanos no Brasil hoje?
O que eu sinto, e hoje em dia não posso falar pela Anistia Internacional, porque não faço parte, mas até antes desse tempo em que fui coordenador do grupo de juristas da Anistia, o Brasil sempre foi daqueles estados, muito por força dos índices de pobreza, que estavam nas agendas das ONGs de direitos humanos. Se elas se surpreendiam apenas e só com os aspectos econômicos e o déficit social do povo brasileiro, elas hoje têm mais, sobretudo no pós-impeachment e todo esse processo, uma preocupação latente pelo estado dos direitos humanos transversalmente ao sistema brasileiro. Nós encontramos aqui diversas dificuldades, mas continuamos a ter pessoas que vivem abaixo do limiar mínimo de sobrevivência; temos um sistema político atual que não é proativo para transformar a realidade dessas pessoas e que coloca em causa, através de suas instituições políticas, o próprio Estado de direito. O que sentimos é que o pilar social regride, mas também o pilar institucional se degrada, com politização do sistema judicial, com um desvalorizar das questões de direitos humanos transversalmente ou segmentadamente, dentro da sociedade brasileira. Nós temos que falar de um retrocesso, claramente. Esta eu acho que é uma visão internacional, porque é isso que se lê na Europa, é esta mensagem que chega lá.
O senhor está trabalhando no seu doutoramento com questões relacionadas ao trabalho prisional e mulheres presas no século 21. Num artigo, questiona quem nos salvará da mídia na era da pós-verdade. Qual a ameaça, a seu ver?
O impacto que a midiatização dos casos judiciais tem nos Diretos Humanos. Neste momento, a mídia atua quase como que uma sentença paralela em face ao sistema judicial. Nós conseguimos construir narrativas imediatas que condenam as pessoas nas redes sociais, tiram direitos, liberdades e garantias. E se algumas destas pessoas têm capacidade de se defender porque têm visibilidade, têm capital, há outras que não, e isso continua a acontecer.
Chegou a visitar algum presídio por aqui?
Estive num presídio feminino em Salvador e encontrei as mesmas representações que encontro em qualquer presídio português, porque as pós-verdades narrativas se criam à volta do sistema, pelas pertenças culturais mas também pelo ideário midiático do Netflix, do CSI, do que é que é estar preso. Vemos no Brasil o mais alto nível, por que não dizer a presidência, referir-se a quem está preso como alguém que é quase sub-humano, no sentido de ter menos direitos que qualquer outro ser humano. Há uma narrativa construída que vai querer categorizar esse ser humano. É a favor dessa desconstrução que pauto minha investigação e no que concerne às mulheres que estão presas.
Esta pergunta também tem a ver com casa, abrigo e violência. No dia 14 de maio de 2013, a quase duas semanas do casamento com seu companheiro, vocês tiveram a casa incendiada. No ano passado, no Dia Internacional Contra a Homofobia, a Bifobia e a Transfobia, vocês foram às ruas de Coimbra dar abraços nas pessoas. Como elaboraram essa experiência?
Foi um período bem difícil da nossa vida a questão do incêndio. Teve um viés homofóbico, de censura à nossa vida, mas todos nós tivemos que decidir, também com ajuda terapêutica, qual o caminho que nós queríamos. O caminho de encontrar o eterno responsável daquela situação, que nunca encontramos até hoje, ou tentar realmente dar o salto e viver a nossa vida para além de tudo. Aquilo foi um problema gravíssimo, não só do ponto de vista material, mas psicologicamente. Enquanto não vendi a casa, não descansei até ela estar reconstruída. É nesse processo que vem depois toda uma sequência. Ano passado tivemos esse episódio, mas já tinha havido outras coisas, não foi a primeira vez que nos expusemos. É, no fundo, um ato emancipatório, porque, não querendo ser exemplo para ninguém, também consideramos que mesmo para nós como para os miúdos, para os nossos filhos, é muito importante a naturalização, conseguir viver com tranquilidade e com harmonia. Também, de algum modo, sentimos a responsabilidade de que, se passamos por isso, nós também devemos ajudar outros. Apesar de não sermos propriamente pessoas muito expostas, também não nos coibimos de viver intensamente nossa vida.
Qual o papel da cultura em relação à mudança de comportamento e o entendimento das liberdades e direitos? Penso no duo Fado Bicha, que mexe na tradição tocando em questões de gênero.
Sem dúvida, a desconstrução da narrativa é muito importante. Acho que a cultura, que é sempre o parente pobre das políticas públicas, tem uma função importantíssima de desconstrução, de confrontação do status quo arcaico. Eu vivo em Coimbra, e nós temos as tradições coimbrisenses, são tradições machistas, mas de um machismo atroz. Continuamos a ter a bela donzela a quem os cavalheiros fazem serenatas. Nos segmentos sociais desse enraizamento das pertenças de algumas pessoas está também o fim da linha do que chamamos o impacto da masculinidade tóxica, que é uma violência, e é claro que há uma conexão com isso. Confesso que não sou muito apreciador do Fado Bicha, mas no sentido das letras e construções que fazem. Como também eu não gosto muito de fado, enfim, não é meu gosto, eu aprecio muito a coragem que aqueles dois jovens também têm de por esse processo de desconstrução ter uma intervenção claramente. Eu penso que a cultura não pode ser tão negligenciada. Temos o movimento 1% para ver se começamos a ter pelo menos 1% do orçamento do Estado dedicado à cultura. Em Portugal, no Brasil e em todo o mundo, a cultura tem um papel fundamental naquilo que defendo muito, que é uma perspectiva desenvolvimentista dos direitos humanos.