A Colômbia está vendo atônita seus juízes, promotores e investigadores pintarem um quadro do que foi a política no país nos últimos 20 anos - e o resultado é muito mais chocante do que qualquer um poderia imaginar. Os chamados paramilitares, grupos armados de ultradireita responsáveis por massacres, extorsões e tráfico de drogas, conseguiram se infiltrar em quase todas as instâncias do Estado colombiano.
Por causa de um programa de desmobilização militar, que exige a confissão dos líderes de tais milícias na Justiça, hoje as histórias secretas desse período estão vindo à tona, causando uma enxurrada de acusações que já arrastou 35% do Congresso, o chefe do exército, o serviço de inteligência e ministros de peso - e chega cada vez mais perto do presidente Álvaro Uribe.
"Será que esses políticos e militares atuavam sem ter contato com o ´chefe dos chefes´? Isso é impossível", acusou, na terça-feira, o ex-líder paramilitar Ernesto Baez, durante uma entrevista ao jornal Washington Post. No dia seguinte, numa tentativa de acabar com a crise institucional criada pela prisão de dois governadores e 13 congressistas (a maioria governista), Uribe propôs libertar os políticos se eles concordassem em contar "toda a verdade", o que deu ainda mais fôlego às acusações contra o presidente. "Uribe quer soltar seus amigos presos", acusou o senador opositor Gustavo Petro.
O escândalo atingiu o núcleo duro do governo há cerca de 10 dias, durante o depoimento na Justiça de Salvatore Mancuso, assassino confesso de 234 pessoas e máximo comandante da Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), entidade que desde a década de 90 reunia os grupos paramilitares do país.
Mancuso fez uma lista dos políticos que teriam ligações com a sua milícia na qual constavam, além de quatro congressistas, 36 prefeitos e dois governadores, o Ministro da Defesa, Juan Manuel Santos, e o vice-presidente, Francisco dos Santos, que há alguns anos teria lhe proposto criar uma frente paramilitar para atuar na capital do país.
As acusações ampliaram a indignação causada pela descoberta de um pacto assinado em 2001 por 32 políticos, no qual eles se comprometiam a "refundar o país" com os paramilitares. "Quando os paras começaram a confessar seus crimes, como parte do processo de desmobilização negociado a partir de 2003, ninguém imaginava que iriam chegar tão longe", disse ao Estado a cientista política Elizabeth Ungar, diretora do observatório Congresso Visível, na Universidade dos Andes. "Até agora apenas três dos 2,5 mil integrantes dessas milícias que estão presos ou são investigados deram seu depoimento e a crise já adquiriu um efeito de bola de neve impressionante, certamente inesperado pelo governo."
Paramilitares
Criados na década de 80 para proteger os fazendeiros e combater guerrilhas de esquerda, como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em lugares aonde o Exército oficial simplesmente não chegava, os grupos paramilitares contavam inicialmente com a anuência de boa parte dos colombianos.
Pouco a pouco, porém, eles começaram a entrar nos mesmos ramos de atividades ilegais que financiavam as guerrilhas: seqüestros, narcotráfico e extorsões. "Mesmo assim, a população aceitava melhor os paras que as Farc porque, com suas idéias socialistas, a guerrilha cobrava taxas maiores dos comerciantes e empresários, enquanto que as milícias de ultradireita em geral não arruinavam a economia dos lugares nos quais chegavam", explicou para o Estado Gustavo Duncan, autor do livro "Os senhores da Guerra", sobre a história do paramilitarismo na Colômbia.
A infiltração desses grupos na política começou nas prefeituras e órgãos de administração regional, nos quais eles se aproveitaram da falta de controle por parte do governo central. "A Colômbia sempre teve mais território que Estado, o que permitiu tanto às Farc quanto aos paramilitares criarem Estados paralelos em algumas regiões", disse Duncan.
Nas localidades controladas por tais milícias, só podiam ser candidatos quem fosse aprovado por suas lideranças e se comprometesse a lhes repassar boa parte dos recursos do orçamento e permitir que eles indicassem alguns secretários.
Os paras financiavam campanhas com o dinheiro do narcotráfico, levavam caminhões de eleitores para votar sob a mira de fuzis e não hesitavam em matar os candidatos que insistissem em participar das eleições sem o seu aval ou todos aqueles que os apoiassem. "Em muitas regiões colombianas se você quisesse fazer política em algum momento teria de se sentar com os paramilitares - e é claro que muitos candidatos também procuravam as milícias espontaneamente", disse ao Estado Alfredo Rangel, diretor da Fundação Segurança e Democracia.
Da política regional para a nacional foi um pulo. De acordo com uma pesquisa feita com base nas estatísticas do Observatório de Direitos Humanos da Vice-presidência, no período que precedeu as eleições de 2002 para o Congresso o número de massacres cresceu 140% nos Departamentos (Estados) nos quais os candidatos tiveram uma votação atípica, com mais de 70% dos votos. Só os crimes cometidos por paramilitares aumentou 664%. "Enquanto o projeto das guerrilhas era derrubar o Estado capitalista, o dos paramilitares era se infiltrar e controlar esse Estado", explica Rangel.
As negociações para a desmobilização de boa parte da AUC frearam o avanço desse processo, embora a influência dos paramilitares continue forte em algumas áreas específicas.
Com o marco jurídico criado pela chamada Lei de Justiça e Paz, mais de 30 mil paramilitares entregaram as armas em troca de anistia para aqueles que nunca haviam sido acusados formalmente de crimes graves (como assassinatos e seqüestros), e penas mais brandas (de 5 a 8 anos) para as lideranças. Em troca, eles agora têm de confessar "toda a verdade", sob a pena de perderem o benefício da lei e ficarem presos por 30 ou mais anos.
Foi essa obrigação, aliada com o ressentimento de alguns lideres ´paras´, recém abandonados por muitos de seus antigos aliados políticos, que tornaram públicos os vínculos encobertos no passado. "Num momento delicado como esse, a proposta do presidente de libertar os políticos metidos com esses paramilitares não só surpreendeu a todos como leva a crer que ele perdeu os estribos - está desesperado para conter a crise", disse ao Estado Augusto Ramirez, ex-chanceler da Colômbia que hoje dirige o Instituto de Direitos Humanos e Relações Internacionais na Universidade Javeriana.
Por enquanto, porém, Uribe se mantém intacto aos olhos da opinião pública - mais ou menos como Lula, no Brasil, quando seu governo se desmoronava com o escândalo do mensalão. O fenômeno, por aqui, vem sendo chamado de "efeito teflon" - porque, até agora, nenhuma denúncia "pegou" no presidente, cujos índices de aprovação beiram os 75%.
"As pessoas culpam os ministros, os deputados e os assessores, mas até que fique provado que o presidente sabia de alguma coisa ou teve algum tipo de relação direta com os paramilitares, sua popularidade continuará alta por causa dos bons resultados na economia e da espantosa melhoria na segurança pública", explica Ramírez.
Muitos analistas colombianos também vêem o escândalo como parte de um processo necessário, apesar de doloroso, para que o país possa cortar de vez os laços que unem os políticos com grupos militares ilegais e o lucrativo negócio do narcotráfico, uma constante na história recente colombiana. Para eles, mesmo que o presidente venha a ser implicado diretamente no escândalo, a Colômbia ainda estará no caminho de uma democracia mais estável e sana. Como define Ramirez: "Sejam quais forem as conseqüências, é sempre melhor conhecer a verdade que tentar ignorá-la".