A cena se repete no Hospital Al-Kindi de Bagdá diariamente, desde que tropas lideradas pelos americanos invadiram o Iraque, há quatro anos: um homem baleado chega e não há leito para interná-lo. Uma vítima de queimadura por explosão entra na ala de emergência e não há analgésicos. Um garoto inconsciente é trazido pelo pai, mas o único aparelho de tomografia existente está quebrado há meses. Falta até filme para tirar um raio X de suas fraturas.
Quando órgãos do governo ou ONGs fornecem produtos hospitalares, é preciso lidar com outro tipo de escassez: a de médicos, que, apavorados com a guerra, fugiram do Iraque. Além da falta de médicos e remédios, há outro receio: o de assaltos, seqüestros e bombas. Acrescente a tudo isso a verba limitada, já que o governo faz repasses apenas esporadicamente.
É com essa rotina que o neurologista xiita Adil al-Shemery, de 59 anos, tem de lidar diariamente desde que assumiu a direção do Hospital Al-Kindi, há 11 meses. "Trabalho em centros médicos iraquianos há duas décadas e estou no Al-Kindi há oito anos. Posso garantir que a situação atual dos hospitais é dez vezes pior do que na época de Saddam Hussein", diz Shemery por telefone, de Bagdá. Nem é preciso lembrar que no período em que o ex-ditador esteve no poder, entre 1979 e 2003, a precariedade do sistema de saúde era patente, visto que o país enfrentou três guerras, 12 anos de intenso embargo econômico e o descaso de um presidente que preferia investir em armamentos.
Demanda"Em dias como o do ataque de Sadriya (em 3 de fevereiro), as ambulâncias resgatam os feridos e os despejam na porta do nosso pronto-socorro, mesmo quando não temos leitos", conta Shemery. "Não há como recusá-los porque não teriam para onde ir." Com 370 leitos sempre lotados, o Al-Kindi recebe, em média, 200 pacientes por dia. "Simplesmente não conseguimos lidar com essa demanda, mesmo mantendo internados só casos graves."
As áreas mais afetadas são as de traumas e de queimaduras. "Nosso aparelho de tomografia é o único em hospital público de Bagdá, e está quebrado há meses", diz Shemery. "O raio-X funciona, mas falta filme. Isso quando não temos problema no gerador e não há eletricidade." Os moradores de Bagdá têm, em média, apenas quatro horas de energia elétrica por dia. O médico relata também o caos na seção de queimados. "A cada bomba, recebemos dezenas de pessoas com queimaduras gravíssimas", diz. "E tanto os traumas como as queimaduras ficam ainda mais desoladores quando passamos para a pediatria."
Mas é a fuga dos médicos que realmente tira seu sono. Um levantamento da Cruz Vermelha revela que, dos 34 mil médicos registrados até 2003, 18 mil já deixaram o país. "Antes da invasão americana, nosso hospital tinha 208 cirurgiões; hoje são só 40", revela o diretor do Hospital Al-Kindi. O principal motivo do êxodo é a falta de segurança, já que os médicos são um dos alvos preferidos dos seqüestradores. Rebeldes capturam médicos para obrigá-los a tratar insurgentes feridos que, se levados a hospitais, podem ser presos.