Paulo Fábio Dantas Neto, cientista político e professor da Universidade Federal da Bahia
Na semana em que os candidatos ao Palácio Thomé de Souza preparam-se para encarar as urnas, A TARDE traz um balanço do que foi a campanha eleitoral, na visão de Paulo Fábio Dantas Neto, cientista político e professor da Ufba. Nesta conversa, ele busca desconstruir o mito sob o qual tanto petistas quanto carlistas teriam garantidos cada qual um terço do eleitorado de Salvador. Na sua análise, Paulo Fábio diz que ACM Neto errou ao despolitizar a campanha e apresentar-se como um "gerente". E ainda critica o discurso de Pelegrino do alinhamento, classificado como "de viés conservador"
As últimas pesquisas apontam para uma polarização entre ACM Neto e Pelegrino. Este cenário está dentro do esperado? É certo dizer que o natural era este cenário de agora e não o de antes, com Neto em larga dianteira?
Eu acho que não. Geralmente, tem se veiculado muito nos círculos políticos uma ideia que é no mínimo perigosa: a de que existe uma certa impermeabilidade de dois terços do eleitorado de Salvador. Ou seja: um terço seria carlista e um terço seria petista. E que as eleições seriam definidas a partir do rumo que o terceiro terço assuma. Por esta interpretação, o que vinha acontecendo nas pesquisas anteriores era uma distorção porque uma parte do terço petista estaria resistindo um pouco a assumir a sua pele tradicional e uma parte do eleitorado indeciso teria ido para os braços de ACM Neto, que estaria acima do seu patamar de sempre. Agora, as coisas estariam voltando aos eixos.
Por que o senhor discorda desta visão?
Acho que esta interpretação é um pouco exata demais para ser verdadeira. Isso porque se atribuiria a dois terços do eleitorado de Salvador um perfil quase ideológico sobre o qual eu tenho dúvidas. Seria admitir que nós estaríamos num mundo politicamente mais coerente do que a realidade que temos efetivamente, que é de um eleitorado susceptível a guerra de imagens e aos efeitos da conjuntura política. Se isso fosse verdade, ACM Neto e Pelegrino não teriam hoje outra coisa a fazer senão correr para os braços do prefeito João Henrique em busca de um apoio que seria definidor da eleição. Não é nada disso que está acontecendo.
Qual seria o cenário na sua avaliação?
Eu creio que a trajetória de ACM Neto como deputado federal aponta para uma lógica que ele tenha conquistado fatias do eleitorado que não eram normalmente conquistadas por candidatos carlistas. Por outro lado, podemos dizer que uma parte das pessoas que tradicionalmente votavam no carlismo pode estar sendo influenciada pelo fato de que uma quantidade razoável de quadros do ex-carlismo está com Pelegrino. Também é possível pensar que uma parte tradicional do eleitorado carlista esteja votando em Mário Kertész, que tem uma trajetória ligada a ACM. É uma série de coisas que ninguém vai poder mensurar, mas que desafiam essa interpretação exata do cenário atual.
Então, podemos dizer que Pelegrino avança sobre fatias que tradicionalmente não votam no PT e Neto também cresce fora do espectro carlista?
Isso pode estar acontecendo. É possível pensar, por exemplo, que Pelegrino está conquistando avanço sobre um grupo que costuma sempre votar no governo, seja ele qual for. Em todos os lugares existe este tipo de eleitor. E não podemos esquecer que a campanha de Pelegrino vem batendo de maneira sistemática num discurso típico de candidatos governistas. É um discurso tradicional, de viés conservador: a ideia de que para Salvador ter recursos a prefeitura precisa estar alinhada com os governos estadual e federal. Da mesma forma, o crescimento de Pelegrino pode estar associado à ajuda providencial que ele tem recebido de Mário Kertész. Ele lembra ao eleitor que nem ACM Neto nem Pelegrino foram testados como gestores. Ora, quando dois inexperientes disputam e um deles - e isso Mário afirma sempre - é do bloco governista, é evidente que isso pode ter um papel de convencimento.
E ainda há os eleitores históricos do PT que estão insatisfeitos com o governo.
Estes também podem fazer diferença. Se Pelegrino tivesse os votos da lógica governista, os da pressão em relação à obtenção de recursos e ainda tivesse todos os votos tradicionais do PT, era para estar com pelo menos 40% nas pesquisas. Mas não está porque os votos do PT não estão, provavelmente, todos com Pelegrino. Uma parte está por aí, fazendo opções outras, como Hamilton Assis, do PSOL. Então, o quadro eleitoral aponta para uma disputa que poderá ter muitas nuances.
O apoio de Lula e a passagem dele pela Bahia tem sido determinante?
Não dá para mensurar a eficácia do apoio em si de Lula. Mas acho que a passagem de Lula por Salvador traz um dado de caráter político: ela aprofundou uma tendência de radicalizar este discurso do governismo. Lula repetiu como um mantra a ideia de que o prefeito deve ter uma afinação com os governos estadual e federal. Não duvido da eficácia eleitoral deste discurso numa cidade em crise. Em eleições municipais, o eleitor tende a raciocinar mais com o que ele imagina que seja melhor para a cidade do que aquilo que ele imagina que seja melhor politicamente. Se o eleitor desse prioridade à política, ele estaria preocupado com a ausência de uma oposição articulada e o risco de predomínio absoluto de uma determinada corrente.
Vemos Neto e Pelegrino numa estratégia de desconstrução do oponente. Por que isso descambou numa queda no nível da campanha?
Acho que essa luta com golpes baixos que passou a vigorar na campanha, ao meu ver, é muito uma antecipação do segundo turno no primeiro. O cenário do segundo turno começou a se descortinar com clareza e os candidatos estão antecipando agora a munição que normalmente seria gasta no segundo turno. Eu, inclusive, fico curioso para saber que coisas novas eles vão trazer no segundo turno se estão gastando toda esta munição já no primeiro turno. Quando a guerra se acirra, começa a não haver limites entre as partes. E faz com que o nível do debate político seja rebaixado. Isso é grave porque despolitiza a discussão.
Quem ganha mais nesta briga de golpes baixos?
Esse tipo de coisa tende a beneficiar quem na disputa eleitoral está no poder. Geralmente quem está fora do poder precisa de uma politização real do processo. E foi neste ponto, ao meu ver, que a campanha de ACM Neto errou, pois assumiu um viés tecnocrático. Eles optaram pela apresentação do candidato como um gerente, como se estivesse fugindo da política, fugindo da evidência de que ele é um candidato que expressa a oposição estadual e nacional ao PT. Como o confronto não apareceu pela via da política real, a política com "P" maiúsculo, ele surgiu através de manipulações publicitárias. O discurso do gerente terminou colidindo com a realidade de que Neto não é um administrador testado. Ele tentou aparecer com um perfil que pode vir a ser o dele amanhã, mas que hoje não é verossímil. Ele é no máximo uma promessa, assim como Pelegrino.
Este rebaixamento do discurso não acaba ofuscando debate sobre a cidade?
Questões como planejamento urbano e uso do solo não entraram na campanha.
O candidato do PSOL, Hamilton, tentou pautar isso. Mas o problema é que o tema veio encapsulado num discurso duro e sectário do ponto de vista ideológico que acabou não tendo apelo. Outra possibilidade de isso aparecer com força seria através da própria campanha de Mário Kértesz. Mas o discurso que ele está fazendo hoje, quando a Inês já é morta, de que a cidade não pode ficar entre carlismo e petismo e deixar suas questões à deriva não foi o discurso inicial. Mário começou a campanha com um discurso que pode ter passado uma certa arrogância, uma ideia salvacionista de que a cidade está numa situação de indigência e precisasse de alguém que viesse salvá-la. Este discurso caiu num certo vazio porque desqualifica a política e apresenta o candidato como uma solução não-política. E isso é difícil ter espaço na atual política brasileira.
De certa forma, João Henrique não foi isso?
João Henrique foi isso. Só que em 2004 ele era um outsider que recebeu dos seus concorrentes do campo oposicionista - Pelegrino e Lídice - um salvo conduto político de que o voto em qualquer um dos três tinha o mesmo sentido de rejeição ao carlismo. Hoje, o espaço para um outsider é cada vez mais reduzido. Talvez isso seja um mérito publicitário da campanha de Pelegrino, que o apresenta como quadro de um campo político definido. E aí faltou esta politização no discurso oposicionista. É uma ausência que se deve lamentar. E deve-se lamentar também que o discurso de Pelegrino tenha resvalado numa conotação conservadora. O discurso do alinhamento poderia aparecer, mas não sob este viés da ameaça.