Bruno Dantas, Ministro do Tribunal de Contas da União | Foto: Marcos Oliveira | Agência Senado
Ministro do Tribunal de Contas da União há seis anos, o baiano Bruno Dantas acaba de ser eleito vice-presidente da Corte, na chapa com a ministra Ana Arrais. De acordo com ele, um dos maiores desafios do tribunal será manter o rigor no cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, zelando para que os gestores não extrapolem as suas funções e não desperdicem recursos públicos. Para o ministro, a atuação do TCU “foi incansável para coibir os pagamentos ilegais do auxílio emergencial”, que foi concedido para mais de 11 mil candidatos na última eleição. “Acreditamos na transparência como forma de controle social”. Confira:
Ministro, o senhor está há seis anos no Tribunal de Contas da União e acabou de ser eleito vice-presidente da Corte. Como avalia o trabalho do órgão?
O Tribunal de Contas da União, sem dúvida alguma, teve uma atuação muito importante nos últimos 30 anos. Veja que o Tribunal tem 120, 130 anos, mas ele recebeu essa feição que tem hoje com força da Constituição de 88, portanto, eu diria que nos últimos 10 anos o Tribunal passou por uma transformação radical. Nós nos transformamos de um Tribunal que antes somente auditava obras de engenharia para assumir um papel que eu considero hoje central na vida nacional, que é sermos também os garantidores da Lei de Responsabilidade Fiscal. Então eu diria que o TCU já passou por muitas fases, já houve uma época em que o TCU tinha uma função praticamente cartorial de aprovar atos de admissão e aposentadoria de servidores públicos, depois passa para uma outra etapa que é de especialização em auditoria de obra, isso começa lá nos anos 90 com a CPI das obras inacabadas, com escândalo do TRT de São Paulo, aquele caso clássico lamentável do Juiz Lalau, culminando com a Lava Jato. Veja que o TCU foi quem descobriu o superfaturamento na compra da refinaria de Pasadena, não foi a Lava Jato que descobriu, foi o TCU. Mas eu diria que hoje essa função de auditoria continua muito importante, mas uma função talvez ainda mais importante é o papel de garantir a responsabilidade fiscal, de zelar para que os gestores públicos não extrapolem as suas funções, não desperdicem recursos públicos, porque nós temos a compreensão de que em muitos casos é possível cometer uma irregularidade dentro da lei. E eu explico o que eu quero dizer com isso: quando a presidente Dilma usou o dinheiro de bancos públicos lá em 2013 para pagar benefícios sociais, ela não roubou esse dinheiro. Evidente, Dilma não teve suas contas rejeitadas porque desviou dinheiro público. Não estou dizendo que fez ou que não fez. Mas, nesse caso, não foi por essa razão que ela foi condenada. Ela foi condenada porque a lei de responsabilidade fiscal impede porque isso é algo desastroso para as finanças de um país, que o governo se financie por meio de bancos públicos. Então observe, não houve corrupção, mas houve uma ilegalidade do ponto de vista da responsabilidade fiscal. Agora mesmo o Tribunal acabou de avisar para o ministro Paulo Guedes que não vai aceitar uma meta flexível para 2021, porque é uma imposição da lei, que o governo estabeleça qual é a meta de gastos para o ano inteiro.
O senhor falou que não houve liberação geral ao permitir gastos do orçamento desse ano em 2021. Como o senhor avalia e como se deu esse processo?
Veja, essa declaração eu dei porque houve uma má interpretação do mercado financeiro, que basicamente são os credores da dívida brasileira. O Brasil está fechando 2020 com um déficit de algo na casa de R$800 bilhões. Um déficit significa que somado tudo que o país arrecadou, que a União arrecadou, com tudo que a União gastou, nós ficamos no cheque especial em R$800 bilhões. É muito dinheiro. E para que o Governo pudesse gastar R$800 bilhões a mais, e aí tem várias razões, o auxílio emergencial, os benefícios tributários que as empresas, as micro e pequenas empresas, precisaram ter para se sustentar durante a pandemia, várias razões devem ser consideradas, mas a verdade é que para o Governo conseguir gastar esses recursos, alguém precisou emprestar dinheiro e isso são os credores e basicamente é o mercado financeiro. Houve uma decisão do TCU nessa semana sobre um tema muito técnico, muito específico, e houve uma interpretação errada do mercado de que o Tribunal estaria aí afrouxando o rigor com que analisa o gasto público. E o que eu disse foi exatamente isso. Existe hoje para 2020 uma âncora fiscal muito poderosa que é o teto de gastos, que está na Emenda Constitucional número 95, que vale por 20 anos. Começou a valer em 2016 e vale por 20 anos, então até 2036 nós vamos ter esse regime especial de teto de gastos, que significa que o governo não pode num ano gastar mais do que gastou no ano anterior corrigido pela inflação. Como isso começou em 2016, isso significa que nós temos que pegar todas as despesas do governo em 2016 e fazer uma mera correção pela inflação e aí estará estabelecido o máximo que o governo poderá gastar em 2017, depois você atualiza 2018, 2019, 2020 e assim por diante. Então essa âncora fiscal do teto de gastos é importante porque é a garantia de solvência do Brasil. É a garantia de que nós podemos dar para os credores internacionais principalmente de que quando os seus títulos vencerem o Brasil vai ter dinheiro para pagar. Então o teto de gastos é uma garantia de solvência do país, então isso é uma coisa. Uma outra coisa é o que as regras orçamentárias definem como restos a pagar. Restos a pagar são as sobras do orçamento de um ano para o outro em que uma obra ou um serviço que foi contratado não pôde ser concluído no exercício fiscal em que houve a contratação. Então o que o TCU disse foi: o governo pode fazer a inscrição de restos a pagar referente ao orçamento de 2020 para 2021 desde que obedeça ao teto de gastos. Essa foi uma orientação que divergiu de uma outra que o Ministério da Economia, que o ministro Paulo Guedes tinha adotado, porque ele tinha proibido rolar sobras orçamentárias de um ano para o outro. O ministro poderia ter feito isso? Poderia, mas ele disse que fez isso por ordem do TCU. O que nós dissemos foi: nós não demos essa ordem. Se o governo quiser fazer isso, que faça, mas não porque recebeu uma ordem do TCU. Se o Ministério da Economia quiser fazer isso por sua própria autoridade, ele pode. O que ele não pode é colocar o TCU como escudo para tomar decisões impopulares diante do Governo. Porque o TCU não decidiu isso.
Como o TCU tem atuado na fiscalização dos recursos que estão sendo disponibilizados para enfrentamento à Covid, ministro?
Essa é uma questão interessante, porque a maioria dos recursos é federal. Mas o gasto está sendo feito pelos estados e pelos municípios. Existe um processo no TCU que está discutindo ainda a competência, até onde vai a nossa competência e onde começa a competência do Tribunal de Contas dos Estados. A minha proposta tende a ser uma atuação conjunta, porque o dinheiro tem origem federal, mas ele ingressa nos cofres dos estados como recomposição pela perda da receita. Então a rigor esse dinheiro deixa de ser federal quando entra nos cofres dos estados e municípios. Porque imagina, um município que tinha lá a arrecadação de X, e aí por causa do lockdown precisou fechar o comércio. Deixou de arrecadar aquilo ali. O fundo que o governo federal transferiu para os estados e municípios funciona como uma recomposição de receita. Não é um convênio como é a forma tradicional de repasse, de transferência voluntária da União para estados e municípios. O convênio é um instrumento específico relacionado a um objeto também delineado e que tem cláusulas contratuais que o prefeito ou governador assina para receber dinheiro federal. Não é esse o caso. Aqui a transferência se dá em razão da lei, não se dá em razão de um contrato. Então há algumas diferenças. É claro que ainda existem convênios, e existem convênios na área, por exemplo, da Funasa, que é a Fundação Nacional de Saúde, mas esses convênios são fiscalizados naturalmente pelo TCU. No nosso caso, nós temos fiscalizado fundamentalmente as compras do Ministério da Saúde. Nós temos uma regra de relatoria aqui no Tribunal que não é por processo, é por setor. Então há um ministro no Tribunal que analisa todos os casos do Ministério da Saúde, não sou eu, é o ministro Benjamin Zymler, e ele é o responsável por todos os processos referentes ao Ministério da Saúde. Então volta e meia nós temos julgado alguns casos, teve um processo por exemplo que o governo pretendia comprar quase R$1 bilhão de aventais de uma empresa que tinha cinco funcionários. O Tribunal mandou avisar ao governo que aquilo era irregular e que iria suspender a licitação, o próprio governo desistiu do contrato. E assim como esse existem outros casos, mas eu não tenho acompanhado de perto esses casos da área da saúde, só quando chega no Plenário para a gente votar.
Como o senhor viu a decisão do governo federal de cobrar o auxílio indevido de 2,6 milhões de pessoas? O valor recuperado ultrapassa a casa do R$1,6 bilhões...
É, na verdade, eu sou o relator desses casos no TCU e eu posso te afirmar que a atuação do TCU foi incansável para coibir os pagamentos ilegais do auxílio emergencial. Primeiro porque é criminoso alguém que não tem direito se inscrever para receber R$600 que o governo está dando de ajuda para pessoas vulneráveis, pessoas que estão com dificuldade para comer, para pagar o seu próprio sustento e o sustento de sua família. Não é criminoso apenas no sentido da fraude, é criminoso no sentido humano, é uma falta de sensibilidade, uma falta de humanidade que eu não consigo nem descrever. Então o TCU, desde o início do pagamento do auxílio emergencial, tomou muitas medidas para evitar e impedir esses pagamentos irregulares. Por exemplo, nós demos uma determinação ao Ministério da Cidadania, que é quem paga o auxílio, que na nossa opinião talvez tenha sido a decisão mais importante que tomamos. Nós obrigamos o Ministério a divulgar a lista das 60 milhões de pessoas receberam o auxílio emergencial. Então, além de ter a fiscalização dos órgãos oficiais, tem o controle social, tem a fiscalização da própria sociedade. Você pode perfeitamente entrar no site do Ministério da Cidadania e verificar se seu vizinho que tem patrimônio, tem renda, se ele se inscreveu para receber irregularmente. Então a partir disso nós recebemos um volume muito grande de denúncias. Não só nós, o próprio Ministério da Cidadania, o Ministério Público, e por aí vai. Então nós acreditamos na transparência como forma de controle social. Isso foi uma das coisas. Uma outra medida que nós adotamos, e essa eu diria que foi também muito impactante, como o TCU tem acesso a 87 bases de dados distintas, desde a base de dados do Detran, para saber quem tem carro, até a base de dados do Ministério do Trabalho, para saber quem está empregado, com carteira assinada, quanto ganha, em que empresa trabalha, até o cadastro de políticos com mandato... Enfim. Nós temos vários cadastros e a verdade é que nós conseguimos fazer alguns cruzamentos muito interessantes. Então, por exemplo, um dos cruzamentos que nós fizemos: nós cruzamos a base de dados da Receita Federal, que tem lá a declaração de bens, com a base de dados da Justiça Eleitoral, das pessoas que se candidataram a prefeito, vice-prefeito, vereador, e a base de dados do auxílio emergencial. Descobrimos um número, já nem me lembro mais o número, mas acho que 11 mil candidatos às eleições de 2020 que receberam irregularmente o auxílio emergencial. E desses quase 1.000, 1.300 se eu não me engano, algum número assim, tinham patrimônio de mais de R$1 milhão. Ou seja, gente que definitivamente não precisava e se inscreveu para receber esse auxílio. Então o TCU tem dado uma contribuição enorme à sociedade nessa área, combatendo fraudes, combatendo esses pagamentos irregulares.
A Operação Lava Jato se fragilizou e muitas pessoas falam inclusive que ela está com os dias contados. O trabalho de fiscalização e atuação contra a malversação do dinheiro público se enfraquece com medidas como essa, ministro?
A Lava Jato teve um papel importante no país de revelar um esquema de corrupção enorme, na maior empresa brasileira que é a Petrobras. E eu acho que, só por isso, a Lava Jato já merece todo o reconhecimento, todos os aplausos. Porém, o que a gente percebeu depois que esse belíssimo serviço foi prestado, é que aqueles heróis que foram forjados a partir de um trabalho bem feito se transformaram em personagens da cena política. Você veja que o juiz Sérgio Moro não se satisfez em fazer o seu trabalho de magistrado e decidiu virar político. A mesma coisa alguns procuradores. Eu acho que aí foi o ponto que eles próprios vulneraram um combate à corrupção. Eu acho que quem fragilizou o combate à corrupção em primeiro lugar foram essas pessoas que, picadas pela mosca azul, decidiram se transformar em políticas e políticos surfando numa indignação popular legítima e infelizmente acabaram por fazer naufragar aí esperanças da população. Houve uma politização da Operação Lava Jato, que foi lamentável.
O senhor se apresenta no Twitter como baiano, idealista e professor. Como um bom idealista, o que esperar para o ano de 2021?
Eu acho que precisamos redobrar a esperança. O ano de 2020 foi um ano muito triste, mas um ano de muito aprendizado. Eu acho que o meu idealismo tem a ver hoje e a partir da experiência triste de 2020 em fazer renascer a esperança e acreditar que a vacina para o nosso povo vai chegar, que vai ser uma vacina distribuída de maneira universal, para que todos os brasileiros tenham direito, não importa a origem da vacina, o que importa é que os brasileiros estejam imunizados contra essa doença terrível. E eu acredito muito sinceramente que nós precisamos nos reorganizar como sociedade. Nós precisamos reduzir as tensões, nós precisamos eliminar o discurso de ódio, nós precisamos, enfim, darmos as mãos como nação na direção de um futuro melhor para os nossos descendentes. Eu acho que o Brasil é uma nação extraordinária, tem todos os recursos que precisa para se tornar um grande país e talvez o que nós precisamos fazer para começar é unir o nosso povo. Espero que 2021 seja um ano para começar isso. Nós mandamos muito mal nos últimos 5, 10 anos. Um certo ódio, um certo rancor cresceu muito no cerne da nossa sociedade, mas eu acredito em virar essa página, superar isso, ter o direito de sonhar, portanto esperança é o que mais me move nessa transição de 2020 para 2021.