À margem dos campos de futebol e da histeria coletiva dos torcedores, a sombria realidade sul-africana não se dissipou só porque o país de Nelson Mandela sediou a Copa de 2010. Quando a maior festa do futebol mundial for encerrada e seus eufóricos campeões (holandeses ou espanhóis) recebidos por compatriotas nas ruas, é provável que os sul-africanos comecem a ser lentamente esquecidos, porque os holofotes da mídia e da Fifa deverão focar cada vez mais os desafios que se impõem para preparação da próxima Copa, em 2014, aqui no Brasil.
Dos 3,5 bilhões de euros (o equivalente a cerca de R$ 10,5 bilhões) investidos pelo governo do presidente Jacob Zuma na construção de dez estádios (estimados em 120 milhões de euros, ou cerca de R$ 360 milhões), em telecomunicações, na linha férrea rápida, construção de habitações e de aeroporto internacional e no recrutamento de 40 mil policiais, quanto será realmente incorporado como investimento permanente e, portanto, benéfico para um país ainda assolado pela violência, tensão racial, pobreza e corrupção?
Dos 100 mil empregos criados para um período de cinco anos, estima-se que a maioria não permanecerá, o que poderá agravar ainda mais a elevada taxa de desemprego de 25%.
Segundo dados de anuários econômicos e políticos mundiais, de um total de 47 milhões de habitantes (79% de negros, 9,5% de brancos, 9% de mestiços, 2,5% de indianos), 20 milhões vivem na extrema pobreza, com menos de R$ 5 por dia.
Embora seja difícil de responder quais serão os resultados dos investimentos econômicos da Copa, teme-se, que, com a volta das populações expulsas de Joanesburgo e Pretória para limpar a imagem de pobreza durante a Copa, eclodam novos e violentos protestos sociais, reivindicando serviços básicos essenciais como água, saúde, eletricidade e educação.
Ao contrário das estimativas de que a Copa uniria ricos e pobres, os menos favorecidos foram barrados da festa considerada vitrine do capitalismo mundial.
Sand Rossouw, de 42 anos, uma das 366 pessoas expulsas de Athlone, Cidade do Cabo desabafou ao repórter David Smith, do jornal britânico The Guardian:
Morávamos a 200 metros do estádio. Estamos morrendo de fome e temos que andar cerca de três horas para comprar um pão. Oito famílias dividem um só banheiro. Por que não investir estes recursos da Copa aqui?
É claro que a Copa não resolve estes problemas. E nem é seu objetivo. Mas daí para piorar a vida dos sul-africanos também é demais.
O fenômeno de violação de direitos das comunidades locais decorrente dos impactos da realização de megaeventos, como Olimpíadas e Copa do Mundo, foi também constatado em outras cidades, como Barcelona e Pequim. O relatório da ONU, de autoria da urbanista Raquel Rolnik, sobre impactos de megaeventos (clique aqui para acessar) denunciou também a falta de transparência da Fifa em relação aos preparativos para a Copa na África do Sul.
De uma forma geral, os maiores ganhos para as cidades realizadoras de megaeventos são a melhoria dos sistemas de transporte e das estruturas aeroportuárias.
Quando a Copa acabar amanhã, será a hora de começar a torcer para que as autoridades sul-africanas apliquem os recursos obtidos com o claro objetivo de melhorar as condições de vida do povo negro sofrido, que há 16 anos ainda era vítima das mais cruéis manifestações do sistema de segregação racial (apartheid).
Um país e seu povo são mais do que simples vitrines capitalistas do esporte, mesmo sendo o futebol a indiscutível paixão das multidões. As responsabilidades sociais não são apenas dos governos organizadores, mas também da Fifa e dos patrocinadores, que, aliás, usufruem de elevados lucros decorrentes das competições em função da venda de direitos de transmissão para emissoras de televisão.
Riquíssima em recursos naturais, como petróleo e pedras preciosas, a África precisa, sobretudo, ganhar a competição da inclusão social e a luta contra a Aids (cerca de 600 vítimas por dia na África do Sul). Mas, para isso, deve combater as longas ditaduras corruptas.
Ranulfo Bocayuva l Jornalista e diretor-executivo do Grupo A TARDE