Projeções apontam que 65% do eleitorado comparecerá às urnas, algo que não acontecia desde 1908 | Foto: Divulgação | White House
Nesta terça-feira, 3, americanos e americanas irão às urnas escolher o próximo presidente dos Estados Unidos. No entanto, o pleito já está a todo vapor. Isto porque nos EUA é possível votar antecipadamente antes mesmo da data oficial, com registro presencial ou pelo correio. Segundo último levantamento do US Elections Project, que compila os dados da votação antecipada, mais de 82,2 milhões de americanos já tinham votado até esta sexta, 29, o que representa 1 em cada 4 eleitores elegíveis para votar neste ano. Um recorde. Projeções apontam que 65% do eleitorado comparecerá às urnas, algo que não acontecia desde 1908, quando as mulheres não tinham o direito de votar no país ainda. Nos EUA, o voto não é obrigatório.
A disputa promete ser histórica. De um lado, o atual presidente americano, o republicano Donald Trump, que disputa a reeleição. Figura controversa, sempre munido de discursos nacionalista e populistas, Trump se destacou pela resiliência com o que defende ideias consideradas ofensivas e desalinhadas com a realidade, como a negação da gravidade da pandemia do novo coronavírus. Do outro lado, o democrata Joe Biden, que foi vice no governo de Barack Obama. Com extensa carreira na política dos EUA, atuando no senado americano desde 1972, Biden é um político de formação, considerado progressista moderado e hábil negociador, com bom trânsito entre adversários republicanos. Para além do choque entre duas personalidades, os dois candidatos defendem ideias opostas e conflitantes.
“A agenda de Trump tem sido, até o momento, crítica aos organismos multilaterais, tendo inclusive rompido com a OMS (Organização Mundial da Saúde). Introduziu uma política comercial mais protecionista e criou um ambiente de tensão com a China. Além disso, Trump reforça um discurso negacionista em relação ao aquecimento global e às questões ambientais mais urgentes. Biden tem uma agenda de resgate das relações civilizadas com os organismos multilaterais. Deve retomar as relações com a OMS, promete avançar a agenda ambiental em defesa da economia verde, bem como a agenda dos direitos humanos”, explica o professor do Instituto de Humanidades Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Marcos Guedes.
Biden escolheu a senadora afro americana, Kamala Harris, para ser vice na chapa dos democratas, enquanto que Trump permanece com seu vice, que busca a reeleição, Michael Pence. Ao ser anunciada por Biden, Harris tem sofrido uma série de ataques de fake news. As investidas são atribuídas a apoiadores do atual presidente. Pence, por sua vez, não sofreu ataques semelhantes, de acordo pesquisa da Zignal Labs, empresa norte americana especializada em inteligência midiática.
As últimas pesquisas nacionais indicam que Biden está à frente e vem consolidando a vantagem em relação a Trump. Na média dos levantamentos, Biden tem sete pontos de vantagem (51% a 44%), segundo o site Real Clear Politics, que acompanha de perto o pleito. Mas as coisas não são tão fáceis como parece. O modelo eleitoral americano é bem diferente do brasileiro, a começar pelo fato de que a votação não é direta. Isto quer dizer que uma eventual vitória nas urnas não leva, necessariamente, à Casa Branca. A votação, na verdade, é para escolher qual candidato ficará com os votos dos delegados, representantes do estado que, na prática, elegem presidente e vice.
Cada estado tem um número determinado de delegados de acordo com o tamanho da população. A Califórnia, com 50 milhões de habitantes, tem 55 delegados, enquanto que o estado de Kansas, com 3 milhões de habitantes, tem apenas 6 representantes. O candidato que ganha em um estado leva o voto de todos os delegados. Isto significa que a vitória em estados com mais representantes é fundamental.
Alguns estados têm tradição em votar mais em republicanos ou democratas, apesar de que os últimos levantamentos indicam que Biden avança em estados geralmente pró-republicanos. A disputa principal é pelos chamados swing states, os estados que não são nem republicanos, nem democratas. E Biden lidera em boa parte desses estados. É o caso da Flórida.
“A Flórida é um estado muito disputado nas eleições presidenciais e é considerado um ‘estado pêndulo’ porque não há forte tendência entre o eleitorado do estado a preferir um partido ou outro. Obama ganhou na Flórida em 2008 e 2012, mas Trump a levou em 2016. Aqui o sistema é de colégio eleitoral, isso faz com que os candidatos invistam muito tempo e recursos na Flórida para garantir os 29 votos [dos delegados]”, explicou a americana Lara Schmertmann Costa, que morou em Salvador durante oito anos e que agora reside na Flórida.
“Aqui em Tallahassee, a capital da Flórida, vejo um clima mais favorável a Biden, mas também há quem apoia Trump de modo ferrenho. As pesquisas nacionais indicam que Biden vai ganhar, porém elas também indicaram uma vitória para Hillary Clinton em 2016, então não vou botar fé até sair o resultado”.
Tensões
A polarização do pleito tem deixado os americanos mais estressados. Segundo uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia (APA, na sigla em inglês), as eleições deste ano têm sido fonte de estresse para ambos os lados da disputa.
“O clima está muito tenso, têm pessoas com estresse, muitas pessoas com ansiedade, pessoas com raiva por causa das injustiças, com a violência policial, com o racismo, com o posicionamento misógino e higienista do próprio presidente. Sempre foi assim, mas com Trum ficou mais visível. ”, afirma a afro americana Renee Marie Adolphe, nascida em Nova Iorque e hoje residente no Rio de Janeiro.
Comunidades historicamente à margem na sociedade americana, como negros e latinos, têm realizado um número cada vez maior de mobilizações para reinvidicar direitos. O assassinato da afro americano George Floyd por um policial branco, neste ano, provocou grandes protestos em todo o país e no mundo. O pesquisador negro Joshua Reason, residente no estado da Pensilvânia, diz que as comunidades negras nos EUA vivem em estado de permanente tensão.
“A minha comunidade está muito cansada da violência policial, a gente está cansado de morrer mais do que qualquer outra comunidade por causa do coronavírus. Aqui na Filadélfia, onde eu moro, houve um assassinato de mais um jovem negro recentemente”, afirma.
Joshua prefere Biden a Trump, mas faz ressalvas: “Biden, na propaganda, apoia as comunidades negras e latinas. Agora, o problema é que, mesmo tendo esse perfil, a política de Biden é muito genérica. Nossas comunidades têm problemas diferentes. Ele não tem um discurso que reconhece isso”.
“Mas eu fico feliz vendo que todo mundo está indo votar. Todo mundo está fazendo sua parte. Eu fui votar no último domingo [25] e tinha um fila enorme para votar, e isto tem a ver com a Covid-19, mas também pelo fato de muito jovens completarem 18 anos, idade que é permitido votar aqui. Muitos jovens negros”.
Reverberações no Brasil
Trump foi um dos principais protagonistas da ascensão de outsiders à política. Com o discurso antistablishment, conseguiu bater a democrata Hilary Clinton em 2016, uma vitória inesperada e que deixou o mundo em suspenso. A vitória do republicano fez com o que onda antipolítica avançasse para além dos muros dos EUA e se espalhasse pelo mundo. No Brasil, Jair Bolsonaro, então candidato à presidência, com discursos e comportamento semelhantes aos de Trump, elegeu-se. O próprio presidente americano chamou Bolsonaro de o “Trump da América do Sul”.
Com Biden à frente nas pesquisas, uma possível derrota de Trump pode ter consequências para o governo Bolsonaro. Mas, como as eleições nos EUA são marcadas por reviravoltas, o resultado é incerto.
“No caso de uma vitória de Trump, nada muda. Por outro lado, caso Joe Biden vença as eleições, o governo do presidente Jair Bolsonaro terá que adotar uma postura mais republicana e pragmática, caso contrário terá dificuldades em construir acordos e parcerias com o governo norte-americano, aumentando consideravelmente o risco de isolamento do país”, opina o professor Marcos Guedes.
Para o professor de Ciências Políticas da UFBA, Joviniano Soares Neto, no caso de uma uma vitória de Biden, o governo Bolsonaro terá uma relação difícil com a administração americana, sobretudo na questão ambiental.
“Temos um presidente que, ostensivamente, apoia Trump, que levou a política exterior brasileira a ser dependente da americana. Uma vitória de Trump reforça a política de Bolsonaro, inclusive internacionalmente. E, com uma vitória de Biden, o governo Bolsonaro terá uma relação mais difícil, a começar pela ambiental”.
“Biden, caso eleito, já anunciou qual será a sua postura em relação aos desmatamentos na Amazônia e disse que enfrentará o coronavírus com mais seriedade do que Donald Trump, revertendo, caso eleito, a saída dos Estados Unidos da OMS. Dentre as propostas do candidato democrata, ele defende que, caso o Brasil não adote medidas de contenção ao desmatamento, nosso país poderá sofrer sanções econômicas”, avalia o cientista político Rodger Richer.
De acordo com a professora de Direito Internacional do Centro Universitário Unijorge, Juliette Robichez, francesa radicada em Salvador, a política ambiental de Biden é antagônica à de Bolsonaro, e está de acordo que isto pode gerar um desconforto entre os dois governos.
“Biden é reconhecido como pioneiro na luta contra as mudanças climáticas. Como vice-presidente, ele esteve diretamente envolvido na negociação do acordo de Paris de 2015, que Donald Trump denunciou. Biden tem grandes ambições: ele está empenhado em construir uma economia baseada exclusivamente em energia renovável e emissão zero de carbono até 2050, o mais tardar.”, afirma.
Contestação
Frente aos levantamentos que indicam vantagem de Biden, Trump já alertou que questionará uma eventual derrota, alegando fraude no registro de votos feito através do correio. O candidato à reeleição insinua, sem provas, que o mecanismo eleitoral, especialmente útil durante a pandemia, facilitaria práticas desonestas. Se Trump questionar o resultado do pleito junto à justiça eleitoral, pode levar semanas, após o anúncio do resultado oficial, para que o mundo conheça o novo presidente dos EUA.
“O voto postal, solução lógica para conter uma epidemia que matou 230.000 pessoas pelo menos nos Estados Unidos, é alvo dos ataques de Trump. Vale lembrar que esse sistema de votação foi implantado desde 2000 e nunca foi comprovada nenhuma fraude eleitoral. Trump alega que o voto postal privilegiaria o voto democrata, pois, como o dia de eleição é uma terça-feira, são os trabalhadores que não conseguem autorização para se liberar para votar que mais usam esse recurso. Daí a política de desinformação intensa nas redes sociais liderada pelo presidente para desacreditar, deslegitimar os resultados da eleição presidencial.”, explica a professora Juliette Robichez.
O que é esperar do próximo presidente?
O novo presidente dos EUA não terá uma tarefa fácil. Seja Trump ou Biden, o mandatário da maior economia do mundo terá que lidar com questões sensíveis à população americana e mundial, como o combate à pandemia da Covid-19, lidar com desigualdades e tensões sociais que agitam o país, construir relações de respeito com organismos multilaterais, além melhorar indicativos econômicos e a política externa com países como China e Rússia, rivais geopolíticos dos EUA.
“Eu espero do próximo presidente dos EUA estratégias para combater a pandemia e as mudanças climáticas que sejam pautada na ciência, um plano de governo que considere a luta pela justiça racial uma prioridade, que valorize a diversidade presente na população e que repense nosso sistema de saúde”, disse a americana Lara Schmertmann Costa Renee Marie Adolphe deseja que Biden bata Trump no dia 3 e deseja que negros e negras votem no pleito.
“Os negros lutaram e morreram pelo direito de votar e espero que todos votem. Precisamos que nosso país mude, que o sistema mude e as políticas mudem. Sei que todas as mudanças necessárias não ocorrerão dentro de 4 anos, mas se Biden e Harris ganharem, será o começo da reunificação do país. Eu realmente desejo que Biden ganhe e Harris possa se tornar a primeira vice-presidente negra dos EUA”, deseja.
“O que eu mais espero do novo presidente é mais união no país. Está mais dividido do que nunca, e um dos vários motivos é injustiça racial. Eu espero que esse novo presidente combata racismo e que seja um exemplo disso também. Espero que ele se importe com as vida das pessoas que ele vai servir. Que ele faça com que a economia melhore durante essa pandemia e cuide dos pobres que não tem plano de saúde”, pediu Alyssa Cox, oriunda da Pensilvânia, e hoje residente em Salvador.
America First
Para os brasileiros, o professor Joviniano Soares Neto alerta: “Biden ou Trump defenderão os interesses norte americanos. Que ninguém pense que, se eleito, Biden vai defender o interesse de terceiros. O que vai mudar é o método de usar o soft power [poder de convencimento em relações internacionais]. Com Biden, teremos um plano político mais civilizado, que discute mais e investe nas relações diplomáticas. Mas os governos americanos defenderão os interesses dos cidadãos e empresas norte americanos, isso não muda. Os EUA não têm amigos, têm interesses. O modo de defender esses interesses que pode mudar”, avalia.